Olaio, A. (2018): “O povoado da Quinta do Almaraz (Almada, Portugal) no âmbito da ocupação no Baixo Tejo durante o 1º milénio a.n.e.: os dados do conjunto anfórico”, Spal 27.2: -163. DOI: http://dx.doi.org/10.12795/spal.2018i27.18

http://dx.doi.org/10.12795/spal.2018i27.18

O povoado da Quinta do Almaraz (Almada, Portugal) no âmbito da ocupação no Baixo Tejo durante o 1º milénio a.n.e.: os dados do conjunto anfórico

The settlement of Quinta do Almaraz (Almada, Portugal) in the context of the occupation on the Lower Tagus during the 1st Millennium BC: the data from the amphorae set

Ana Olaio
Arqueóloga.
Correo-e:
anaolaio@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2356-2893

Resumo: As escavações arqueológicas desenvolvidas na Quinta do Almaraz, na margem esquerda da foz do estuário do Tejo, revelaram uma extensa ocupação da Idade do Ferro. Do vasto conjunto de artefactos recolhidos, as ânforas destacam-se como uma categoria relativamente numerosa e tipologicamente diversa. O estudo concretizado demonstrou a maioritária presença de produções locais/regionais, face a uma diminuta representação de importações, essencialmente oriundas do Sul da Península Ibérica. Os dados das ânforas traduzem-se num importante contributo para a compreensão da dinâmica do povoado da Quinta do Almaraz e testemunham a produção anfórica desenvolvida no estuário do Tejo durante o 1º milénio a.n.e., bem como a grande autonomia económica e capacidade de auto-abastecimento desta área ao longo da Idade do Ferro.

Abstract: Archaeological excavations carried out in Quinta do Almaraz, on the left bank of Tagus estuary’s mouth, revealed an extensive Iron Age occupation. From the vast set of artifacts collected, amphorae stand out as a relatively numerous and typologically diversified category. The study showed the predominant presence of local/regional productions, against a small representation of imports, which are mainly from the South of the Iberian Peninsula. The amphora data revealed an important contribution to understanding the dynamics of the settlement of Quinta do Almaraz and testified the amphorae production of the Tagus estuary during the 1st millennium BC and the great economic autonomy, as well as self-sufficiency of this area throughout the Iron Age.

Palavras-chave: Quinta do Almaraz; Idade do Ferro; Ânforas; Estuário do Tejo; Comércio.

Keywords: Quinta do Almaraz; Iron Age; Amphorae; Tagus estuary; Trade.

1. Introdução

A Quinta do Almaraz localiza-se em Cacilhas, no concelho de Almada, na margem esquerda da foz do estuário do rio Tejo (fig. 1). O povoado da Idade do Ferro foi identificado em 1986 por Luís Barros e José Manuel Sousa e, a partir de 1988, assistiu a várias campanhas de escavação, que revelaram uma densa ocupação enquadrável no 1º milénio a.n.e.. Perante a importância do povoado e o seu estado de conservação, foi classificado em 2013 como Sítio de Interesse Público.

Figura 1. Localização da Quinta do Almaraz no território actualmente português (base cartográfica da UNIARQ).

O estudo que agora se publica tem como base a tese de Mestrado em Arqueologia apresentada pela autora à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em 2015, que incidiu sobre o conjunto das ânforas da Idade do Ferro identificadas na Quinta do Almaraz, depositado no Museu de Arqueologia e História de Almada. O interesse da abordagem residia, por um lado, nos contributos que as ânforas poderiam trazer para a compreensão das dinâmicas do povoado e da sua evolução ao longo do 1º milénio a.n.e. no âmbito da economia, produção e contactos comerciais na região do Baixo Tejo; por outro, na utilidade dos dados para o aprofundamento da discussão sobre a cronologia do sítio, para a qual o conjunto traria eventuais informações pertinentes. Finalmente, pela importância que tinha no âmbito da caracterização das ânforas produzidas no estuário do Tejo durante a Idade do Ferro, tema que tem assistido a grandes desenvolvimentos nos últimos anos.

2. Quinta do Almaraz: o povoado da Idade do Ferro

A Quinta do Almaraz encontra-se na vertente Sul de um longo esporão, que supera os 60 metros de altura e se apresenta recortado a Norte por uma arriba, que lhe proporciona excelentes condições naturais de defesa (fig. 2). Desenvolve-se em pendente no sentido Norte-Sul, apresentando um desnível que termina «num vale bem definido, que confina com o morro de Cacilhas» (Barros et al. 1993: 144). Esta localização conferiu-lhe um grande controlo sobre a foz do rio Tejo e territórios envolventes, numa posição altamente privilegiada na trajectória de acesso ao interior, bem como às rotas atlânticas e mediterrâneas.

Figura 2. Quinta do Almaraz vista de Lisboa.

Ainda que tenham sido identificados, nesta plataforma, vestígios relativos a outras cronologias, como Calcolítico, Bronze Final e Romano Republicano (Barros 2001: 13, Barros et al. 1993: 146, Barros e Henriques 2002b), os testemunhos relativos à Idade do Ferro foram os únicos que, até ao momento, se encontraram em estratigrafia conservada, correspondendo ao momento em que a ocupação da plataforma se revelou mais intensa.

É provável que o povoado se estendesse, de forma mais ou menos contínua, até Cacilhas, junto ao rio. Esta é uma área bastante resguardada, com potencialidades naturais de ancoragem, onde foram identificados alguns vestígios da Idade do Ferro, entre os quais se encontra uma estrutura que tem vindo a ser interpretada como cais pré-romano (Barros e Henriques 1998a: 102).

O povoado não se encontrava, naturalmente, isolado no território. São vários os indícios que apontam para o enquadramento de Almaraz numa rede de povoamento, que se terá desenvolvido durante o 1º milénio a.n.e. (fig. 3). Apesar das parcas informações publicadas, os dados disponíveis permitem supor que, pelo menos, desde o século VI a.n.e., surge uma série de ocupações dispersas pela zona Norte do território do actual concelho, em áreas de fácil acesso ao rio e terrenos férteis (Barros 1998: 35). Entre os vestígios incluem-se os da Rua Manuel Febrero/Pedrada, na Cova da Piedade (Silva e Soares 1986: 137) e os da Quinta do Facho e Figueira 1, no Monte de Caparica, sítios onde foram recolhidos alguns artefactos enquadráveis na Idade do Ferro, como cerâmicas de engobe vermelho, ânforas e produções manuais (Barros 1998: 38). Também na Quinta da Torre (Monte de Caparica) foram reconhecidos vestígios que, no entanto, denunciam uma ocupação curta e mais tardia, entre a passagem da Idade do Ferro e o período Romano (Cardoso e Carreira 1997-1998).

Figura 3. Vestígios da Idade do Ferro em Almada. (1) Quinta do Almaraz; (2) Cacilhas; (3) Gruta de S. Paulo; (4) Rua Manuel Febrero/Pedrada; (5) Quinta do Facho; (6) Quinta da Torre; (7) Figueira 1.

Estas têm sido interpretadas como pequenas instalações dependentes de Almaraz, que assumiria o controlo político-económico durante a Idade do Ferro (Arruda 1999-2000: 113, Cardoso 2004: 231). Foram ainda identificados, a cerca de 1 km da Quinta do Almaraz, numa das Grutas de São Paulo, diversos vestígios relativos aos séculos VI-V a.n.e. que, no entanto, indiciam um contexto singular, distinto dos anteriormente descritos (Barros 1998: 35).

Os dados são ainda insuficientes, sendo indispensável proceder ao seu estudo e publicação detalhada, de modo a compreender as dinâmicas de povoamento na margem esquerda da foz do estuário do Tejo ao longo do 1º milénio a.n.e.

2.1. Arquitectura e Urbanismo

Durante as intervenções realizadas na Quinta do Almaraz entre 1988 e 2001, foram reconhecidas algumas estruturas de cariz habitacional e defensivo.

Dado que as escavações no sítio foram orientadas para a abertura de diversas sondagens ao longo do povoado, com o objectivo principal de compreender os seus limites, são poucos os dados sobre o seu urbanismo interno. Deste modo, as estruturas de carácter habitacional foram registadas, até ao momento, apenas em duas áreas da parte superior da plataforma.

Na área em que a zona escavada foi mais significativa (D20) foram identificados muros de traçado rectilíneo construídos com recurso a calcários e argilas locais (Barros 1998: 36) que definem alguns compartimentos (fig. 4). Sobre os embasamentos pétreos elevar-se-iam paredes em adobe e, associados a estes, estariam pavimentos em argila cozida (Barros 1998: 36). Dentro de um dos compartimentos foi identificada uma estrutura de combustão (fig. 5), composta por fragmentos de cerâmica partida e placas de argila cozida, com cerca de 90 cm de diâmetro e vestígios nas extremidades do que poderá ter sido o arranque de uma cúpula, também em argila (Barros 1998: 36).

Figura 4. Vista de sudeste das estruturas habitacionais identificadas no quadrado D20.
Figura 5. Pormenor da estrutura de combustão identificada no quadrado D20.

A estrutura com mais área escavada trata-se de um fosso, que foi identificado e intervencionado em diversas sondagens (fig. 6) e aparentemente rodeia o povoado pelo lado Sul. Os troços reconhecidos apresentam grandes variações ao nível da dimensão, geometria e orientação (figs. 7 e 8), variando entre os 3 m e os 3,80 m de largura e os 2 m e os 3,50 m de profundidade (Barros e Henriques 2002a: 296-297). No que respeita à geometria, pode apresentar um perfil em ‘U’ ou em ‘V’, com fundo plano, em ângulo agudo ou uma caleira no fundo (Barros e Soares 2004: 399). A sua orientação também não é completamente regular já que, mesmo em sectores próximos, o fosso anuncia um desenvolvimento em direcções ligeiramente distintas.

Figura 6. Planta da plataforma da Quinta do Almaraz com localização aproximada das áreas escavadas entre 1988 e 2001 e respectivas estruturas.
Figura 7. Fosso: perfil do J27/4.
Figura 8. Fosso: perfil do K31.

Estas variantes levam a que seja questionável se estamos perante uma única linha de características particulares, se existe mais do que uma estrutura; ou, por outro lado, podem reflectir uma adaptação ao terreno e necessidades de ampliação da frente de defesa em determinados pontos.

As distintas características que o fosso de Almaraz vai revelando podem, adicionalmente, dever-se às funções que teve ao longo da sua utilização. É provável que, num primeiro momento, a abertura do fosso estivesse essencialmente relacionada com o aproveitamento de matéria-prima para construção (Lorrio 2012: 78).

Adicionalmente, estas estruturas tinham também um importante papel como delimitadores do espaço urbano, proporcionando uma certa organização e segurança interna (Díes Cusí 2001: 83). Para além de uma eventual função defensiva e delimitadora, os fossos são um excelente canal de distribuição e drenagem de água (Ruiz Mata 2001: 263), particularmente num terreno como o de Almaraz, com um forte declive. Num momento final, em que as funções iniciais deixam de fazer sentido, as estruturas tipo fosso podem ser utilizadas para despejos de lixos, que resultam no preenchimento progressivo da estrutura.

Para nenhuma das áreas escavadas do fosso foi realizada uma descrição sistemática da sequência estratigráfica, estando apenas disponível uma análise muito genérica. Deste modo, sabe-se que os estratos que o enchiam eram tendencialmente horizontais, intercalando «micro-camadas» de «areia e argilas» (Barros e Henriques 2002a: 297) e que «Apesar (…) de não existirem vestígios de transporte significativo de materiais após o depósito, verifica-se que é comum encontrar fragmentos da mesma peça nas mais diversas camadas do seu enchimento» (Barros e Soares 2004: 340). A sua colmatação foi então interpretada como um processo rápido, no decorrer do séc. VII a.n.e., como consequência da necessidade de crescimento do povoado (Barros 2001: 14, Barros e Soares 2004: 340) – voltaremos a esta questão mais adiante.

Foram também identificadas algumas estruturas de grande dimensão (fig. 9), próximas do fosso, interpretadas como muralha da Idade do Ferro (Barros 2001: 12, Barros e Henriques 2002a: 296). Acompanham perpendicularmente alguns dos taludes do terreno, apoiando a sua construção no substrato rochoso, e são constituídas por blocos de pedra de pequena e média dimensão essencialmente de origem local (Cardoso 1990: 120). No entanto, os dados que se conhecem até ao momento não permitem certezas relativamente à interpretação que tem vindo a ser adoptada.

Figura 9. Estrutura interpretada como muralha da Idade do Ferro.

Antes de mais, pelas características da estrutura, que se apresenta com uma espessura consideravelmente reduzida e não ostenta elementos que a enquadrem nos sistemas típicos da Idade do Ferro. Ainda que não seja raro registar-se uma associação entre fosso e muralha na delimitação de povoados durante a primeira metade do 1º milénio a.n.e., o modelo mais comum na Idade do Ferro de influência oriental são as muralhas de compartimentos (Diés Cusí 2001: 75). Este sistema é composto por dois muros que se desenvolvem paralelamente, deixando entre si espaços vazios que, em alguns casos, eram divididos em compartimentos e poderiam ser preenchidos com terra ou utilizados para armazenamento (López Castro et al. 2010: 30). Em determinados casos verifica-se uma outra solução, em que um único lanço de muralha é reforçado, interna ou externamente, por contrafortes ou torreões espaçados de forma irregular, que conferiam robustez à estrutura (Rodero Olivares e Berrocal-Rangel 2011-12: 229-230).

Apesar de se verificarem outras soluções no âmbito da arquitectura defensiva proto-histórica da Península Ibérica ao longo do 1º milénio a.n.e., relativamente à estrutura da Quinta do Almaraz faltam dados concretos fundamentais, nomeadamente sobre as características construtivas e as indispensáveis associações estratigráficas que confirmem o seu enquadramento na Idade do Ferro e contemporaneidade relativamente ao fosso. Sem pretender excluir a hipótese de se vir a confirmar a referida interpretação, considera-se que se deve ser prudente e aguardar por intervenções direccionadas a compreender a estrutura em questão.

O único contexto do povoado com dados estratigráficos publicados, até ao momento, corresponde a uma estrutura negativa, identificada no quadrado U45/3 e interpretada como fossa de detritos (fig. 10). Esta terá sido escavada no substrato geológico e tem uma profundidade máxima de 0,90 m e um diâmetro de abertura de contorno elíptico de cerca de 3 m (Barros et al. 1993: 146-151). Foi defendido um processo de enchimento prolongado no tempo, em três momentos distintos (Barros e Soares 2004: 351). No seu interior foi identificada «uma estrutura mais antiga» (Barros e Soares 2004: 339), sob a qual estaria uma camada («Alm11»), correspondente a uma fase de ocupação anterior à abertura da fossa, à qual foi igualmente atribuída uma cronologia entre o final do século IX e os inícios do VIII a.n.e. (Barros e Soares 2004: 351).

Figura 10. Base da fossa de detritos do U45/3.

Vários investigadores (p. ex.: Arruda 1999-2000: 108-111, Henriques 2006: 37-40, Sousa 2014: 47) têm alertado para a dificuldade em encontrar coerência nas informações publicadas, nas quais a estratigrafia vai sendo alvo de diferentes interpretações. Não obstante, esta é a estrutura com maior número de dados estudados.

2.2. Questões cronológicas

Das escavações de Almaraz resultou a recolha de uma grande quantidade de artefactos, encontrando-se a maioria por estudar. Além das abordagens à cerâmica de engobe vermelho e cerâmica cinzenta da fossa de detritos (Barros et al. 1993, Henriques 2006), os restantes dados publicados derivam de uma selecção aleatória de alguns fragmentos cerâmicos de diversas categorias (Barros e Henriques 1998b, 2002a, 2002b) com referências pouco elucidativas ao contexto de proveniência.

Apesar desta lacuna no conhecimento do sítio arqueológico, um considerável conjunto de datações por radiocarbono, relativo às estruturas negativas do povoado – fosso e fossa de detritos –, já se encontra publicado (Barros e Soares 2004). Com base nas datações por radiocarbono, foram defendidas cronologias para as respectivas estruturas e, em virtude destas, enquadradas «as primeiras manifestações orientalizantes» no povoado na «segunda metade do séc. IX a.C.» (Barros e Soares 2004: 344). Estas deduções levantaram, ao longo do tempo, um conjunto de questões, particularmente pela falta de informações alusivas aos contextos de proveniência e artefactos associados.

Como já foi referido por outros autores, até ao momento não se conhecem materiais que consubstanciem as cronologias mais antigas de Almaraz (Arruda 2005b: 285). Mesmo tendo em conta a recente revisão da sequência cronológica do Mediterrâneo Central e Ocidental, que permitiu enquadrar o início da presença fenícia nestas áreas no último quartel do séc. X ou pleno séc. IX cal BC, recuando a denominada datação «histórica» ou «tradicional» em mais de 100 anos (Núñez 2015, López Castro et al. 2016, entre outros), e apesar de algumas datações de Almaraz serem compatíveis com o início da influência orientalizante no estuário do Tejo, os poucos materiais que se conhecem não permitem confirmar as datações mais antigas (Arruda 2005b: 283-285).

Acresce o facto de os resultados das datações de Almaraz proporcionarem, em vários casos, amplos intervalos de tempo – superiores a 300 anos – (Barros e Soares 2004: 349), pelo que devem ser utilizados com prudência, em conjunto com a informação estratigráfica e o estudo dos artefactos (Torres Ortiz 1998: 50, Núñez 2015: 30-33).

Além do mais, fazer deduções sobre a cronologia de início de ocupação de um povoado através da datação de estruturas negativas considera-se arriscado, já que estas não estão isentas de problemas – particularmente quando tratamos de fossos. Antes de mais, porque é necessário ter em conta que dificilmente datamos o momento de construção destas estruturas, a não ser que estejam em relação física directa com uma realidade datável (Valera et al. 2014: 14), pelo que convém observar o tempo que pode decorrer entre a escavação da estrutura e o início da sua colmatação.

Deve ainda considerar-se que um fosso com o hipotético perímetro proposto para Almaraz (Barros e Soares 2004: 339) poderia apresentar diferentes ritmos de construção e, possivelmente, de preenchimento e abandono. As estruturas com estas características assistem muitas vezes a fenómenos de colmatação complexos, já que podem ser alvo de sucessivas reaberturas (Valera 2013: 336). Estes casos, não sendo devidamente isolados, podem originar situações ambíguas de mistura de materiais de diferentes cronologias ou até, eventualmente, de «fragmentos da mesma peça nas mais diversas camadas» do enchimento do fosso (Barros e Soares 2004: 340). Adicionalmente, deve considerar-se que a colmatação e processos de reabertura destas estruturas podem resultar na integração de elementos mais antigos em contextos mais recentes, situações em que «a data obtida será naturalmente mais antiga do que o momento da integração da amostra datada no depósito de colmatação da estrutura» (Valera e Silva 2011: 9), sublinhando que o que datamos é a morte dos elementos orgânicos e não necessariamente o momento em que são integrados no enchimento das estruturas (Valera 2013: 336) – pelo que as datações nem sempre reflectem a cronologia do contexto.

Por todos estes motivos, a cronologia obtida para determinada camada tem de ser devidamente confrontada com o restante registo arqueológico e não pode ser extrapolada para toda a secção em causa - e muito menos para a totalidade da estrutura (Valera 2013: 336). Não se pretende, deste modo, desvalorizar os resultados concretos das datações, mas sublinhar que as conclusões de carácter cronológico para o sítio arqueológico da Quinta do Almaraz têm de resultar de uma combinação de elementos, em que se deve incluir, para além das datações de radiocarbono, o estudo exaustivo dos artefactos, consubstanciados por uma apresentação clara e compreensível do contexto e relações estratigráficas precisas. A abordagem ao conjunto das ânforas pretende assim ser um contributo nesse sentido.

3. O conjunto anfórico da Quinta do Almaraz

3.1. Questões prévias

O volume de materiais enquadráveis no 1º milénio a.n.e. recolhidos durante as escavações realizadas entre 1988 e 2001 na Quinta do Almaraz torna manifestamente impossível o seu estudo integral num único trabalho. Por este motivo, considera-se que análises parcelares e exaustivas, baseadas em conjuntos coerentes, permitirão uma adequada aproximação ao sítio e a realização de futuros trabalhos de síntese.

No extenso conjunto de artefactos, as ânforas da Idade do Ferro estão relativamente bem representadas. Considerando que o espólio do sítio não se encontrava organizado, revelou-se obrigatória a triagem da totalidade dos fragmentos recolhidos durante as escavações da Quinta do Almaraz. Desta forma, separaram-se todos os fragmentos de bordos, asas e fundos que pudessem corresponder a ânforas – não se excluindo, naturalmente, a possibilidade de virem a ser identificados mais fragmentos em triagens futuras.

Deste modo, foram identificados e seleccionados 929 fragmentos classificáveis de ânfora, dos quais 501 são bordos, 425 são asas, apenas dois fundos e um corpo. A maioria do conjunto (63,72%) provém do fosso, 8,96% da área de habitação, 11,15% da fossa de detritos e 16,17% resultam de limpezas de superfície e pequenas sondagens distribuídas por várias áreas do povoado. De acordo com o protocolo de quantificação de Mont Beuvray (Arcelin e Tuffreau-Libre 1998), devidamente adaptado às especificidades da amostra, o conjunto traduziu-se num Número Mínimo de 501 Indivíduos (NMI) - ainda que apenas 463 sejam passíveis de enquadramento tipológico.

O estudo privilegiou, em primeiro lugar, a origem dos fabricos e, posteriormente, a análise com base em critérios morfológicos. Dado que 96,8% do conjunto total é de origem local/regional, os desafios na identificação das formas foram vários, particularmente pelo seu estado de fragmentação, que impossibilitou a reconstituição de exemplares completos.

Deparámo-nos ainda com as limitações impostas pela ainda insuficiente informação que possuímos para as produções do estuário do Tejo. Dado que muitas das ânforas que se conhecem são resultado de achados de superfície, escavações antigas ou outras mais recentes realizadas em contexto urbano, com todas as restrições inerentes a este tipo de intervenção (nomeadamente a exiguidade das áreas de escavação, que proporcionam um registo muito parcelar), ainda são poucas as associações contextuais que se consubstanciem em cronologias seguras. O próprio caso da Quinta do Almaraz também é paradigmático pois, apesar de ter sido alvo de escavações sistemáticas até 2001 e não ter sido afectado por construções recentes, a ausência de um registo que reflicta uma sequência estratigráfica completa, publicado de forma esclarecedora, não autoriza conclusões de carácter cronológico muito concretas.

Outro dos desafios na identificação das produções do estuário é o facto de, não raras vezes, nos estudos de conjunto realizados, a atribuição morfológica se sobrepor à análise dos fabricos - identificando-se (por vezes, erradamente) como protótipos do Sul peninsular aquilo que são, na verdade, produções locais/regionais –, algo que acontece com particular incidência nos exemplares mais antigos, afins aos da série 10 de Ramon Torres. No caso da área do estuário do Tejo, a semelhança de algumas formas de produção local/regional com modelos de outras zonas do Sul da Península Ibérica, conduziu, como já foi evidenciado por outros autores (Sousa 2014: 107), a uma utilização indiscriminada da tipologia de Ramon Torres. É disto exemplo o caso das várias ânforas classificadas como 1.3.2.4., uma produção muito específica da área de Villaricos que decorre durante o séc. V a.n.e. (Ramon Torres 1995: 172) e que correspondem, com grande probabilidade, ao tipo 4 definido para o Tejo (Sousa 2014: 108). No caso concreto de Almaraz, verificou-se uma situação semelhante aquando da identificação da forma 2.1.1.1. de Ramon Torres (Barros e Soares 2004: 344) e da forma 3.1.1.1. da mesma tipologia (Barros e Soares 2004: 344) não sendo, porém, explicitadas as características de fabrico que permitiram reconhecer tais produções. Este tipo de omissão não é incomum. Tal como referem os autores da síntese tipológica do Tejo, «os dados publicados até ao momento sobre estas ânforas não esclarecem, na maior parte dos casos, as características macroscópicas de fabrico» (Sousa e Pimenta 2014: 305), o que se revela um obstáculo no momento de estabelecer paralelos.

A abordagem ao conjunto de Almaraz reflecte assim um quadro de questões prévias, sublinhando-se que é urgente a apresentação de estudos que privilegiem o critério produtivo, além do morfológico.

3.2. Ânforas de produção local/regional

A produção de ânforas no estuário do Tejo revela-se, actualmente, como um fenómeno variado e complexo, com uma grande amplitude cronológica. Apesar da existência de uma produção regional de ânforas ter sido sugerida anteriormente (Arruda 1999-2000: 208, Pimenta 2005: 90-93), só recentemente foi realizada a primeira síntese destas produções denominadas «centro-atlânticas» (Sousa e Pimenta 2014). Esta foi concretizada na sequência da abordagem ao considerável conjunto anfórico da Rua dos Correeiros, centrado nos séculos V/IV a.n.e. (Sousa 2014), e da publicação de outros trabalhos sobre o 1º milénio a.n.e. no Tejo, que permitiram identificar e iniciar uma caracterização sistemática das produções da área do estuário.

A tipologia elaborada para o Tejo (Sousa e Pimenta 2014) foi a base de referência para organizar o conjunto da Quinta do Almaraz. Tendo em conta as especificidades do mesmo, foi possível estabelecer algumas variantes para o tipo 1 do Tejo, pelo que se concretizará um primeiro ensaio sobre a sua possível evolução.

Através da análise macroscópica foram diferenciados três grupos de fabrico de presumível origem local/regional (fig. 11), de matriz muito semelhante, com pastas homogéneas e de natureza não calcária. O Grupo de Fabrico 1 é o que se encontra mais bem representado, correspondendo a 93,6% do conjunto total. Tendo em conta a sua caracterização, parece enquadrar-se no Grupo I definido para as produções do estuário do Tejo, característico da zona da foz do estuário, concretamente da área Lisboa/Almaraz (Sousa e Pimenta 2014: 269).

Figura 11. Fabricos locais/regionais.

O Grupo de Fabrico 2 encontra-se representado em 2,2% do conjunto anfórico. As características diferenciadoras relativamente ao anterior são a maior representação de elementos não plásticos brancos, bem como a sua tonalidade rosa. Em determinados fragmentos constatam-se bastantes vácuos ou fissuras de pequena dimensão, em maior proporção que o GF1 e o GF3. Apesar de reconhecermos que as variações na coloração, bem como a maior proporção de vácuos, podem somente resultar de uma cozedura irregular, optou-se pela sua individualização.

O Grupo de Fabrico 3 encontra-se representado em 1,1% do conjunto em estudo. As características diferenciadoras são a coloração das pastas, de tons escuros, castanhos ou acinzentados, a maior proporção de elementos não-plásticos e as características mais grosseiras (isto é, menos depuradas) das pastas.

3.2.1. Tipo 1 do Tejo

O tipo 1 do Tejo está representado em Almaraz por 276 NMI (ou 55% do conjunto de bordos). É um modelo inspirado nos primeiros protótipos da série 10 de Ramon Torres, cuja produção, na área do estuário do Tejo, parece iniciar-se numa fase antiga, entre os finais do séc. VIII e os inícios do VII a.n.e., tal como indica a presença de um exemplar num contexto enquadrável nessa cronologia na Rua de São Mamede ao Caldas (Sousa e Pimenta 2014: 305, Pimenta et al. 2014: 729). A sua produção decorre por vários séculos, estando presente ainda em contextos do século V e inícios do IV a.n.e., como a Rua dos Correeiros (Sousa 2014: 93), sendo, para já, difícil de definir quando termina a sua produção.

Morfologicamente, porém, constatou-se que a forma sofre algumas alterações ao longo da sua produção, das quais se destacam o notável aumento do diâmetro dos bordos (Sousa e Pimenta 2014: 306) e o desenvolvimento das paredes, que se tornam progressivamente mais pendentes. Verifica-se ainda, em alguns contentores, a aplicação de pintura vermelha ou castanha, simples ou em bandas, particularmente na superfície externa do recipiente – algo que, como se verificará, ocorre em todas as variantes do tipo 1.

A partir do conjunto da Quinta do Almaraz foi possível diferenciar três variantes para o tipo 1 do Tejo.

A primeira variante (1.A) reproduz de forma notável o tipo 10.1.1.1 definido por Ramon Torres (1995) e está representada em Almaraz por três exemplares (fig. 12). A variante diferencia-se por possuir bordos estreitos, com face externa vertical ou ligeiramente côncava, lisa ou moldurada, e com um sulco entre o bordo e a parede. Esta desenvolve-se de forma consideravelmente horizontal a partir do bordo, formando um ângulo bem definido e anunciando uma morfologia ovóide. A variação dos diâmetros é mínima, entre os 12 e os 13 cm. O ombro do recipiente deverá, à imagem do que acontece na segunda variante, ser bem marcado e situar-se no primeiro terço da ânfora.

Figura 12. Ânforas de produção local/regional na Quinta do Almaraz: Tipo 1 do Tejo, primeira variante (1.A).

Importa aqui referir a presença de um paralelo para esta variante num dos contextos mais antigos da cidade de Lisboa, a Rua de São Mamede ao Caldas. Este é um bom indicador do início da produção anfórica no estuário do Tejo, já que o referido contexto foi datado entre a segunda metade do século VIII e a primeira metade do séc. VII a.n.e. em cronologia tradicional (Pimenta et al. 2014: 729). O fabrico do fragmento em questão, com engobe vermelho na superfície externa, foi inicialmente atribuído ao Sul peninsular (ibd), admitindo-se posteriormente a sua produção local/regional (Sousa e Pimenta 2014: 305).

A segunda variante (1.B) é um modelo afim à forma 10.1.2.1 de Ramon Torres (1995). Diferencia-se da variante anterior essencialmente por apresentar um bordo espessado, de grossura variável, cujo perfil é tendencialmente triangular - podendo, no entanto, adquirir formas um pouco mais angulosas. A parte externa do bordo desenvolve-se, por norma, de forma vertical ou ligeiramente côncava, apresentando-se bastante lisa, ainda que em alguns casos possa aparecer moldurada. Os diâmetros apresentam uma maior oscilação, entre os 10 e os 18 cm. A parede, tal como na variante anterior, desenvolve-se horizontalmente a partir do bordo, formando um ângulo bem definido entre ambos os elementos e evidenciando uma morfologia ovóide. O ombro continua a ser bem marcado, localizando-se na parte superior do recipiente.

Em Almaraz encontra-se representada por 109 NMI (fig. 13). Está presente em diversos sítios da Idade do Ferro no estuário do Tejo, no entanto, destaca-se a ausência em contextos datados do século V a.n.e. em diante, como na Rua dos Correeiros, ou nos sítios arqueológicos dos concelhos contíguos a Lisboa cuja ocupação se enquadra na segunda metade do milénio, tal como Amadora e Sintra (Sousa 2014). Esta ausência pode ser considerada como um indicador de que a produção desta variante não ultrapassa o final do séc. VI a.n.e.

Figura 13. Ânforas de produção local/regional na Quinta do Almaraz: Tipo 1 do Tejo, segunda variante (1.B).

A terceira variante (1.C) assemelha-se à anterior; porém, a parede desenvolve-se a partir do bordo de forma muito mais pendente, sendo a ligação entre estes elementos mais suave, não evidenciando um ângulo marcado. Os bordos apresentam um perfil genericamente triangular, mas desenvolvem-se de forma mais esvertida que a variante anterior. A parte externa do bordo é tendencialmente côncava e lisa – ainda que surja, em alguns casos, moldurada. Os diâmetros variam entre os 10 e os 20 cm. O ombro do recipiente parece estar situado mais abaixo que na variante anterior, apresentando-se também menos marcado, ainda que permaneça no primeiro terço da ânfora.

Em Almaraz encontra-se representada por 164 NMI (fig. 14) e encontra paralelo em diversos sítios no estuário do Tejo, essencialmente em contextos do século V a.n.e. em diante, ainda que a presença de alguns exemplares da Sé de Lisboa (Arruda 1999-2000: 124) possa ser considerada um indicador de que a variante se desenvolve ainda no final do século VI a.n.e. Destaca-se igualmente, neste contexto, o paralelo directo com a forma 1B definida para a Rua dos Correeiros, cuja ocupação da Idade do Ferro se centra entre os séculos V e IV a.n.e. (Sousa 2014: 97-99).

Figura 14. Ânforas de produção local/regional na Quinta do Almaraz: Tipo 1 do Tejo, terceira variante (1.C).

3.2.2. Tipo 2 do Tejo

O tipo 2 do Tejo é um recipiente de corpo fusiforme e bordo subcircular espessado externamente, comum nos repertórios da foz do estuário, particularmente na área de Lisboa, onde surge essencialmente a partir do século V a.n.e. (Sousa e Pimenta 2014: 306).

Em Almaraz está representado por apenas dois NMI, cujos diâmetros são 11,5 e 14 cm (fig. 15). Perante a pouca representatividade neste conjunto, não podemos deixar de sublinhar o facto do tipo 2 do Tejo ter, até ao momento, uma presença sempre pouco significativa nos contextos em que surge, algo que igualmente se constata na Rua dos Correeiros, onde a forma corresponde à variante 1Aa, com apenas nove exemplares (Sousa 2014: 95).

Figura 15. Ânforas de produção local/regional na Quinta do Almaraz: Tipo 2 do Tejo.

A ausência da forma no conjunto da Sé de Lisboa, cuja cronologia não ultrapassa o séc. VI a.n.e., bem como a sua presença em contextos republicanos, da segunda metade do séc. II a.n.e., permitiram concluir que a sua produção teve início durante o séc. V a.n.e., prolongando-se por um longo período de tempo (Sousa e Pimenta 2014: 306).

3.2.3. Tipo 3 do Tejo

O tipo 3 do Tejo tem «um colo curto e relativamente estrangulado» e um bordo que «apresenta secções variáveis» (Sousa e Pimenta 2014: 306), de tendência trapezoidal ou subcircular. O desenvolvimento da parede anuncia-se mais globular nuns casos e mais fusiforme noutros. Em Almaraz encontra-se representado por 133 NMI, com diâmetros que variam entre os 10 e os 22 cm (fig. 16). Alguns exemplares apresentam um engobe vermelho ou castanho na zona do bordo. Um dos indivíduos do conjunto encontra-se particularmente completo, com um ombro pouco marcado, situado no primeiro terço do recipiente, e asas de secção circular, localizadas entre o bordo e o ombro.

Figura 16. Ânforas de produção local/regional na Quinta do Almaraz: Tipo 3 do Tejo.

O início da produção deste tipo parece acontecer ainda durante o séc. VI a.n.e., tendo em conta que se regista da Sé de Lisboa (Arruda 1999-2000: 123-125, Sousa e Pimenta 2014: 306), e perdura por todo o século V e inícios do IV a.n.e., como demonstra a sua presença na Rua dos Correeiros (Sousa 2014: 93). Destaca-se adicionalmente o facto de estar ausente em contextos do final do 1º milénio a.n.e., como a Quinta da Torre, em Almada (Cardoso e Carreira 1997-1998), o que pode ser considerado um indício de que a produção da forma termina no final da Idade do Ferro (Sousa e Pimenta 2014: 308).

3.2.4. Tipo 4 do Tejo

Este é um contentor que possui um bordo bastante engrossado internamente, com tendência vertical e lisa na sua superfície externa (Sousa e Pimenta 2014: 308). O corpo desenvolve-se de forma mais ovalada que o tipo 1, com o qual apresenta algumas afinidades. Em Almaraz está representado por apenas 19 NMI, com diâmetros a variar entre os 12 e os 20 cm (fig. 17).

Figura 17. Ânforas de produção local/regional na Quinta do Almaraz: Tipo 4 do Tejo.

Surge em diversos sítios do estuário do Tejo, realçando-se novamente a sua presença em Lisboa, na Rua dos Correeiros (variante 1D), dados que apontam o século V a.n.e. como o momento de início da sua produção, que também parece terminar no fim da Idade do Ferro (Sousa e Pimenta 2014: 308).

3.2.5. Tipo 7 do Tejo

O tipo 7 caracteriza-se por um «perfil superior troncocónico, com paredes rectilíneas. O bordo é, ao nível da superfície externa, praticamente indiferenciável da restante parede» (Sousa e Pimenta 2014: 311), que se desenvolve de forma consideravelmente vertical, anunciando um corpo cilíndrico.

Em Almaraz apenas cinco indivíduos lhe pertencem, com diâmetros a variar entre os 11 e os 17,5 cm (fig. 18). Como mencionaram os autores da referida tipologia, é difícil precisar o momento de produção e utilização desta forma (Sousa e Pimenta 2014: 311). Apesar de na área de Lisboa surgir maioritariamente em contextos já republicanos (p. ex.: Pimenta 2005: 90-92), o início da sua produção pode remontar aos finais da Idade do Ferro, concretamente à transição entre os séculos IV e III a.n.e. (ibd). Realça-se a presença do tipo 7 num outro sítio arqueológico do concelho de Almada, a Quinta da Torre, cuja ocupação se centra nos últimos momentos da Idade do Ferro (Cardoso e Carreira 1997-1998).

Figura 18. Ânforas de produção local/regional na Quinta do Almaraz: Tipo 7 do Tejo.

3.2.6. Asas e fundos

Foram identificadas 425 asas de ânfora e dois fundos. Quanto aos últimos, o reconhecimento de apenas dois exemplares (fig. 19) deve-se, em grande medida, ao estado de fragmentação do material, que não permite uma clara diferenciação destes elementos. Um dos fragmentos identificados apresenta uma forma convexa, de perfil em ogiva invertida, típico de diversos modelos de ânforas da Idade do Ferro – habitualmente designadas ânforas “de saco”. O outro apresenta um fundo troncocónico de pequenas dimensões, maciço e essencialmente preenchido com argila.

Figura 19. Ânforas de produção local/regional na Quinta do Almaraz: Fundos.

Relativamente às asas, reconheceram-se dois tipos de secção (fig. 20). A circular – mais representada no conjunto – que contabiliza 401 fragmentos de secção simples, nove com uma saliência central ao longo da parte externa da asa e apenas um com um sulco central ao longo do lado externo; a secção oval, que conta com 14 exemplares com um sulco central, novamente acompanhando a parte externa da asa, e dois exemplares que, além deste sulco central, apresentam uma divisória na parte interna, recordando as asas de secção bífida. Tendo em consideração a diminuta representação da asa oval com sulco central no conjunto de Almaraz, contrariamente ao que se verificou na Rua dos Correeiros (Sousa 2014: 104), podemos estar perante uma tradição que se desenvolve essencialmente a partir de meados do milénio.

Figura 20. Ânforas de produção local/regional na Quinta do Almaraz: Asas.
Figura 21. Ânforas de produção local/regional na Quinta do Almaraz: Corpo.

3.3. Ânforas importadas

Após uma revisão do conjunto, deparámo-nos com um número de possíveis importações superior ao reconhecido durante a dissertação que deu origem a este artigo. Perante a dificuldade em identificar concretamente a origem dos vários fabricos, e para evitar equívocos, optou-se apenas por descrever macroscopicamente, dentro do possível, cada um dos fabricos identificados (figs. 22 e 23). Desta forma, não será apontada uma origem concreta para cada um dos fabricos, ainda que se considere que deverão ser oriundos de outras áreas, nomeadamente do Sul da Península Ibérica (Cádiz ou Málaga). Diferem dos fabricos locais/regionais essencialmente pela depuração e textura da pasta e o tipo de inclusões que apresentam, salientando-se a identificação de elementos negros de reduzida dimensão, consideravelmente frequentes (no caso dos fabricos 4, 5 e 6), e a coloração amarelada da pasta (no caso dos fabricos 7 e 8), características que não se verificam nas produções locais/regionais. Porém, não descartamos a hipótese de outras origens e esperamos que futuras análises arqueométricas comparativas nos permitam conclusões mais consistentes.

Figura 22. Fabricos importados.
Figura 23. Fabricos importados.

Relativamente às formas, registam-se essencialmente exemplares da série 10 de Ramon Torres. Foram reconhecidos dois exemplares de 10.1.1.1 da referida tipologia (fig. 24, n.º115 e 121), modelo produzido e comercializado entre meados ou o segundo quartel do séc. VIII e a primeira metade do séc. VII a.n.e. (Ramon Torres 1995: 229-230). Identificaram-se também 26 exemplares de 10.1.2.1 (fig. 24), modelo produzido e comercializado amplamente entre o século VII e os meados do séc. VI a.n.e. (Ramon Torres 1995: 230-231). Os exemplares de Almaraz apresentam alguma variação no perfil do bordo, sendo de destacar aqueles que exibem uma morfologia mais angulosa (como os n.º 129, 136, 228 e 640). Estes encontram paralelos em alguns sítios do Sul da Península Ibérica, evidenciando-se aqui a clara semelhança com as formas dos estratos IV e IIb do corte 5 de Cerro del Villar, datado entre a segunda metade do séc. VII e o séc. VI a.n.e. (Aubet et al. 1999: 407), dado que se pode tornar relevante no reconhecimento da sua origem.

Figura 24. Ânforas importadas na Quinta do Almaraz: exemplares de 10.1.1.1 e 10.1.2.1.

Regista-se ainda um exemplar de Pellicer D (ou 4.2.2.5 de Ramon Torres), uma ânfora bastante mais tardia que, tendo em conta a existência de vestígios relativos ao período Romano Republicano em Almaraz, poderá inclusivamente já não pertencer a um contexto da Idade do Ferro. O exemplar identificado (fig. 25) surgiu na banquete do quadrado U45/3 (fossa de detritos), não estando registada a camada de proveniência – pelo que não excluímos a possibilidade de ter sido recolhida em camadas superficiais. Contudo, a forma é produzida e comercializada entre o século III e o séc. II a.n.e. (Ramon Torres 1995: 194, Niveau de Villedary 2002: 240, García Vargas e García Fernández 2009: 148), podendo ter chegado ainda durante a fase pré-romana.

Figura 25. Ânforas importadas na Quinta do Almaraz: exemplar de Pellicer D.

3.4. Distribuição do conjunto e leitura comparada dos dados

O conjunto merece ainda ser analisado tendo em consideração a sua dispersão pelos vários contextos identificados no sítio arqueológico da Quinta do Almaraz, particularmente pelos contributos que pode proporcionar à discussão sobre a diacronia do povoado.

Ainda que sejam muito poucos os dados publicados para as restantes categorias cerâmicas e que a falta de informações relativas à sequência estratigráfica limite bastante a maioria das reflexões que aqui se poderão desenvolver, considera-se que a informação já publicada merece uma apreciação conjunta. Optou-se assim por destacar os contextos mais relevantes, concretamente o fosso (sobretudo os troços que têm artefactos publicados além das ânforas), a área de habitação e a fossa de detritos.

3.4.1. Área do fosso

Para o troço escavado no quadrado J27/4, além das ânforas (tabela 2), encontram-se publicadas datações por radiocarbono (Barros e Soares 2004) e alguns exemplares de cerâmica de engobe vermelho (Barros e Henriques 2002: 308-309). As datações publicadas, provenientes da camada 31, revelam um intervalo amplo, entre o séc. XII e o V cal BC (Barros e Soares 2004: 341), com intersecções entre o fim do séc. X e os inícios do VIII cal BC (917, 802 e 796). Esta intersecção aproxima-se do que foi obtido para Santarém, concretamente nos estratos mais antigos (Fase I), onde se identificaram ânforas do tipo 10.1.1.1, pratos de engobe vermelho de bordo estreito e amplo diâmetro, bem como uma grande percentagem de cerâmica manual (Arruda 2005a: 27-28). Em Almaraz, na camada de onde provêm as datações, foi identificada uma 10.1.2.1 e indivíduos do tipo 1.B do Tejo, bem como exemplares do tipo 1.C e do tipo 3 do Tejo – que, como vimos anteriormente, são formas que se desenvolvem a partir dos finais do séc. VI a.n.e. e continuam a surgir em vários contextos durante o séc. V a.n.e.

Tabela 1. Quadrado A12/B12 (fosso) – distribuição dos tipos anfóricos (NMI).

Camada/Forma

1.A

1.B

1.C

3

4

7

10.1.2.1

1

1

2

1

2

1

3

2

1

1

4

1

8

2

11

1

12

1

14

1

1

1

16

1

18

3

21

1

22

1

24

2

8

25

1

26

1

1

1

1

28

1

1

2

29

1

31

4

1

3

1

33

1

34

1

35

1

1

36

1

s/c

1

2

1

Tabela 2. Quadrado J27/4 (fosso) - distribuição dos tipos anfóricos (NMI).

Camada/Forma

1.A

1.B

1.C

3

4

10.1.1.1

10.1.2.1

3

1

5

4

1

6

1

7

1

1

4

10

2

15

1

2

2

1

16

1

18

1

1

19

1

2

1

22

2

2

2

23

1

25

2

3

1

2

28

1

1

2

31

4

3

1

1

s/c

2

2

1

Alguns exemplares de cerâmica de engobe vermelho do J27/4 foram publicados juntamente com artefactos de outras áreas de Almaraz (Barros e Henriques 2002a: 308-309). Constata-se a presença de formas afins ao tipo P.3.d. de Rufete Tomico (fig. 26), que em Huelva se torna frequente em contextos do séc. VI a.n.e. (Rufete Tomico 1988-89) e em Almaraz surge em diversas camadas do fosso, inclusivamente naquela de onde provêm as datações supracitadas.

Figura 26. Exemplares de engobe vermelho do J27/4 (segundo Barros e Henriques 2002a, adaptado).

Foi também identificado um exemplar semelhante à forma P.1.d., que se regista em Huelva entre o final do séc. VIII e o início do VI a.n.e. (Rufete Tomico 1988-89) - mas que, em Almaraz, surge na mesma camada que ânforas do tipo 1.C - que, como referimos, têm paralelos no Tejo a partir dos finais do séc. VI a.n.e. em diante.

Salientamos, porém, o facto de estas formas de pratos de engobe vermelho estarem ausentes do conjunto da Rua dos Correeiros, o que sugere que deixaram de se produzir em algum momento do séc. V a.n.e. - não obstante a presença de ânforas do tipo 1.C e tipo 4 do Tejo indicar que o fim da colmatação deste troço de fosso já deverá enquadrar-se no séc. V a.n.e.

Finalmente, regista-se um fragmento de vaso de alabastro, proveniente da camada 22 (fig. 29: ALZ 1649). Este, apesar da reduzida dimensão, exibe algumas afinidades com o tipo 6 - particularmente o 6 C - definido para a necrópole de Laurita, forma de tradição egípcia que surge por todo o Mediterrâneo desde época arcaica e perdura até aos séculos VI e V a.n.e. (Pellicer Catalán 2007: 49).

Do quadrado J28/2, além dos dados das ânforas (tabela 3), que novamente remetem para vários momentos cronológicos entre o séc. VII e o V a.n.e. (ou até mesmo o IV a.n.e., tendo em conta a presença do tipo 7 do Tejo), o único elemento publicado trata-se de um fragmento de cerâmica grega atribuível ao Coríntio Médio – isto é, 600 a 575 a.n.e. – (Cardoso 2004: 229, Arruda 2007: 135).

Tabela 3. Quadrado J28/2 (fosso) - distribuição dos tipos anfóricos (NMI).

Camada/Forma

1.B

1.C

3

4

7

10.1.2.1

2

1

2

6

1

7

1

8

1

9

1

1

1

12

1

2

1

1

15

1

1

1

1

16

1

18

1

1

21

1

2

3

24

1

3

3

28

2

1

1

1

32

1

1

35

1

36

3

1

39

1

43

1

2

47

1

Tabela 4. Quadrado K31 (fosso) - distribuição dos tipos anfóricos (NMI).

Camada/Forma

1.B

1.C

3

4

10.1.2.1

1

1

2

1

1

1

3

3

1

1

2

5

1

3

6

1

1

7

3

4

1

1

8

2

1

1

2

9

1

11

3

3

1

1

12

1

14

2

1

1

1

15

1

16

2

17

1

1

1

18

1

1

19

1

20

1

2

22

1

24

1

25

1

26

1

28

1

36

1

s/c

4

8

4

Tabela 5. Sondagem 6/Vala E - distribuição dos tipos anfóricos (NMI).

Camada/Forma

1.B

1.C

3

2

4

2

2

3

1

1

4

3

2

6

2

1

9

1

s/c

2

No quadrado K29 voltamos a ter mais alguns dados publicados além das ânforas (tabela 6), dos quais se destacam as cerâmicas de engobe vermelho e a cerâmica cinzenta (Barros e Henriques 2002a; fig. 27). A cerâmica cinzenta resume-se a exemplares de potes com paralelos no tipo 3 da Sé de Lisboa, sítio onde é a forma mais bem representada (Arruda et al. 2000: 32). A sua presença em contextos do séc. VI a.n.e., como a Sé e a Travessa do Chafariz d’el Rei e, por outro lado, a ausência em contextos já do séc. V a.n.e., como a Rua dos Correeiros, levou a que se colocasse a hipótese de esta ser uma forma característica do séc. VI a.n.e. (Sousa 2014: 144).

Tabela 6. Quadrado K29 (outros contextos) - distribuição dos tipos anfóricos (NMI).

Camada/Forma

1.B

1.C

3

10.1.2.1

1

1

s/c

2

3

1

1

Relativamente à cerâmica de engobe vermelho, surgem algumas formas com paralelos no séc. V a.n.e., das quais se destacam as tigelas (fig. 27, n.º 25-26) idênticas ao tipo 1Ba dos Correeiros (Sousa 2014: 119). Encontram-se igualmente publicados pratos (fig. 27, n.º 27, 28 e 29) com claras afinidades com o tipo 3Ba da Rua dos Correeiros (Sousa 2014: 116), ainda que esta seja uma forma que surge no Tejo durante o séc. VI a.n.e. (Arruda 1999-2000: 117). Por fim, regista-se a presença de um fragmento de cerâmica grega (Cardoso 2004: 229), novamente atribuível ao Coríntio Médio – 600-575 a.n.e. (Arruda 2007: 135). Tendo em conta todos estes dados, encontramo-nos mais uma vez perante um intervalo cronológico situável entre o séc. VII e o V a.n.e.

Figura 27. Exemplares de engobe vermelho e cerâmica cinzenta do K29 (segundo Barros e Henriques 2002a, adaptado).
Figura 28. Exemplares de engobe vermelho e cerâmica cinzenta da Sondagem 6/Vala E (segundo Barros e Henriques 2002a, adaptado).
Figura 29. Vasos de alabastro da Quinta do Almaraz (segundo Cardoso 2004, adaptado).

No quadrado K31 constata-se a representação de vários tipos de ânforas (tabela 4), incluindo sete exemplares de 10.1.2.1 distribuídos por várias camadas do fosso que, em conjunto com os dados das produções locais, apontam para vários momentos, entre o séc. VII e o V a.n.e. Também nesta zona do fosso, concretamente no K31/2 (c. 14), foi identificado um escaravelho em faiança com uma inscrição na base (Cardoso 2004: 229). Este já foi objecto de análise em duas publicações, das quais resultaram propostas cronológicas que variam entre o séc. VII-VI (Almagro-Gorbea e Torres Ortiz 2009) e o séc. VII-V a.n.e. (Almeida e Araújo 2009). Na mesma camada em que foi identificado o escaravelho, foi também reconhecida uma outra importação, designadamente um fragmento de bordo de um vaso de alabastro (Cardoso 2004: 237; fig. 29: ALZ 1785), novamente afim ao tipo 6 definido para a necrópole de Laurita e particularmente semelhante com um exemplar desta forma identificado em Guadalete (Pellicer Catalán 2007: 49, 145).

A Sondagem 6 da Vala E é o último troço de fosso que apresenta outros dados publicados além das ânforas (tabela 5), incluindo datações por radiocarbono. Do contexto «Alm 9» (que corresponde à camada 9 da sondagem) existem apenas duas datações. A primeira, realizada sobre osso, resultou num intervalo a dois sigma entre o primeiro quartel do séc. X e o séc. IX, com uma intersecção em finais do séc. IX cal BC (830) (Barros e Soares 2004: 341). Na mesma camada de onde provêm estas datações regista-se apenas um exemplar do tipo 1.B do Tejo, cuja produção parece ter decorrido, em cronologia tradicional, entre o séc. VII e o VI a.n.e.

Do contexto «Alm 2» da mesma sondagem existem quatro datações, mas apenas uma sobre osso. Estas resultaram num intervalo calibrado a dois sigma entre o fim do séc. IX e o final do séc. V, com vários pontos de intersecção entre o séc. VIII e o final do séc. VII cal BC (Barros e Soares 2004: 341). As datações sobre conchas tiveram como resultado um intervalo entre o final do séc. IX e os meados/primeira metade do VIII e os inícios do séc. VI cal BC. No mesmo contexto surge o tipo 1 do Tejo, nas variantes 1.B e 1.C, bem como o tipo 3 do Tejo, que se regista em várias camadas do enchimento.

Estão ainda publicados alguns dados alusivos a outras categorias cerâmicas, dos quais destacamos os relativos à cerâmica cinzenta (Barros e Henriques 2002a: 309-310; fig. 28). Regista-se um indivíduo do tipo 1B da Sé de Lisboa (n.º 39) e duas taças que se assemelham ao tipo 6 da Sé (n.º 35-36), com um perfil essencialmente igual, diferenciando-se os exemplares de Almaraz apenas por não apresentarem um colo tão desenvolvido. Outros dois indivíduos correspondem a tigelas de perfil ligeiramente carenado, pouco profundos (n.º 37-38) e exibem algumas semelhanças com a variante 1Ba definida para a cerâmica cinzenta da Rua dos Correeiros (Sousa 2014: 135-136). Do mesmo modo, uma das taças publicadas (n.º40) tem paralelos na variante 1Bc.1 do sítio lisboeta (Sousa 2014: 154), diferenciando-se, porém, o exemplar de Almaraz pelo desenvolvimento mais vertical das asas, por apresentar engobe vermelho na superfície externa e possuir uma decoração sobre o bordo (Barros e Henriques 2002a: 304). Os dados apontam assim, mais uma vez, para vários momentos entre o séc. VII e o séc. VI ou inícios do V a.n.e..

3.4.2. Área de habitação

Relativamente às áreas de habitação, encontram-se estudadas apenas as ânforas, todas de produção local/regional, à excepção de um exemplar de 10.1.1.1., cujo fabrico parece ser oriundo do Sul da Península Ibérica (fig. 24, n.º15). Os tipos do Tejo representados (tabelas 7 e 8) apontam para uma cronologia entre o séc. VII e os finais do VI a.n.e., salientando-se, porém, novamente, a necessidade de obter mais dados sobre estas áreas, não só relativos a outros artefactos, como também à própria sequência estratigráfica, visto que nos poderão fornecer elementos concretos sobre o momento de ocupação do povoado.

Tabela 7. Quadrado D22 - distribuição dos tipos anfóricos (NMI).

Camada/Forma

1.B

1.C

3

1

2

4

2

7

1

13

1

19

1

1

Tabela 8. Quadrado D20 (área de habitação) - distribuição dos tipos anfóricos (NMI).

Camada/Forma

1.B

1.C

3

4

10.1.1.1

5

1

6

1

1

1

8

1

1

9

1

10

2

2

3

12

1

1

13

2

14

2

15

1

1

19

1

20

1

23

1

36

1

42

1

56

2

s/c

1

3.4.3. Fossa de detritos

O quadrado U45/3, onde foi identificada a fossa de detritos, é, como já foi referido, a área para a qual possuímos mais dados estudados (ainda que não correspondam à totalidade do conjunto cerâmico proveniente deste contexto).

A cerâmica de engobe vermelho foi publicada no primeiro artigo sobre o sítio (Barros et al. 1993) e, posteriormente, alvo de uma extensa revisão crítica (Arruda 1999-2000: 104-108), pelo que destacamos apenas dois aspectos.

Em primeiro lugar, o facto de o conjunto ter sido publicado sem informações relativas às frequências de cada forma nos vários níveis arqueológicos identificados, o que impossibilita leituras comparadas dos dados.

Em segundo lugar, realça-se a presença formas que encontram paralelos em contextos do séc. V a.n.e. no estuário do Tejo. Exemplo disso são as denominadas «taças em calote» (Barros et al. 1993: 180), que têm correspondência na forma 1Aa da cerâmica de engobe vermelho da Rua dos Correeiros (Sousa 2014: 118). Além destas, surgem potes (Barros et al. 1993: 181) afins à forma 6Bb, tal como a autora do estudo sobre o sítio lisboeta assinalou (Sousa 2014: 126). Regista-se também a presença de uma série de taças carenadas, denominadas «taças de pé» (Barros et al. 1993: 180-181) que, como já referimos, correspondem à forma 3Ba dos Correeiros (Sousa 2014: 122) e parecem ser formas características de momentos mais avançados da Idade do Ferro na foz do rio Tejo (Arruda 1999-2000: 106-107).

Note-se que, apesar de estarem presentes morfologias mais antigas, os autores da primeira publicação referem que as formas mais recentes coexistem nos mesmos níveis que as mais antigas (Barros et al. 1993: 157).

A cerâmica cinzenta foi alvo de um estudo aprofundado (Henriques 2006), registando-se aqui as principais conclusões, que podem ser confrontadas com as ânforas e datações absolutas.

Da base da fossa de detritos estão publicadas algumas datações com a referência «Alm 11», que se situava «sob o muro que a fossa de detritos cortou» e corresponderia a «uma estrutura mais antiga» (Barros e Soares 2004: 339). As análises de radiocarbono referentes a este contexto apontaram para um intervalo entre o fim do séc. IX e os meados do séc. VII, com intersecções em final do IX e meados do VIII cal BC (812 e 767) (Barros e Soares 2004: 341).

Integrando igualmente o contexto descrito, foi identificado um exemplar do tipo 2 do Tejo, que já havia sido publicado, ainda que com outra atribuição tipológica (Barros e Soares 2004: 345), bem como exemplares do tipo 3 e do tipo 1, nas variantes 1.B e 1.C. Deve ainda referir-se a presença de uma taça de pé em engobe vermelho (Barros e Soares 2004: 339) que, em conjunto com os dados das ânforas, levam a que seja difícil enquadrar este contexto em momento anterior ao séc. V a.n.e. Dado que na abordagem realizada à cerâmica cinzenta se assumiram os dados do «M» e «M2» como parte integrante do nível 5 – isto é, incorporando o enchimento da fossa (Henriques 2006: 81) -, não possuímos informações para este nível.

No nível 5, interpretado como o primeiro estrato de enchimento da fossa (Barros e Soares 2004), predomina o tipo 1 definido para a cerâmica cinzenta de Almaraz – tipo 1 da Sé (Arruda et al. 2000) -, registando-se outras formas que, no entanto, são menos frequentes (Henriques 2006: 81), o que conduziu a autora a apontar uma cronologia do séc. VII a.n.e. para este nível (ibd). Porém, é necessário referir que o tipo 1 é uma forma que perdura no Tejo por toda a Idade do Ferro (Arruda 1999-2000: 196) e que o tipo 3 da Sé, também presente neste nível (Barros e Soares 2004: 346, n.º5), parece ser típico em contextos do séc. VI a.n.e. (Sousa 2014: 144). Relativamente às ânforas, registam-se formas que se produzem e comercializam essencialmente a partir do séc. VI a.n.e. (tabela 9).

Tabela 9. Quadrado U45/3 (fossa de detritos) - distribuição dos tipos anfóricos (NMI).

Camada/Forma

1.A

1.B

1.C

2

3

4

7

10.1.2.1

Pellicer D

1

1

3

1

3|3

1

3|4

4

2

3

1

5

2

58

1

62

1

1

1

63

1

64

1

2

1

67

3

1

1

68

1

72

1

1

2

75

2

1

79

1

1

1

81

1

82

2

1

BC3

1

1

M2

1

3

1

2

s/c

2

4

1

As datações absolutas publicadas para o U45/3 relativas ao «Alm 12» – que corresponde ao nível 5 -, demonstram um intervalo calibrado entre o séc. X e os finais do séc. VI cal BC (Barros e Soares 2004: 341). Tendo em conta este intervalo cronológico, os dados das ânforas e da cerâmica cinzenta, juntamente com o facto de no nível anterior se registarem artefactos que remetem para o séc. V a.n.e., não é possível recuar a cronologia deste contexto para lá da referida data.

No nível 4, definido na primeira publicação sobre o sítio (Barros et al. 1993: 146) mas sem correspondência no artigo relativo às datações, predomina novamente o tipo 1 definido para a cerâmica cinzenta, bem como os tipos 9 e 7 (Henriques 2006: 82). São formas cuja produção se iniciou ainda durante o séc. VIII a.n.e., mas apenas se generalizam no decorrer do séc. VII a.n.e., o que conduz a autora a propor uma cronologia de transição entre o séc. VII e o VI a.n.e. para o referido contexto (ibd). No entanto, assinalamos a presença de paralelos para o tipo 9 de Almaraz na Rua dos Correeiros, concretamente na variante 4Aa (Sousa 2014: 141), o que revela a possibilidade de o modelo surgir em momentos mais avançados. O registo das ânforas, por sua vez, demonstra novamente formas cuja produção se centra em redor dos séculos VI e V a.n.e., como sugere a presença dos tipos 1.B, 1.C e 3 do Tejo.

No nível 3 registam-se formas mais tardias de cerâmica cinzenta, caracterizadas por alguma simplicidade e sem motivos decorativos, com superfícies menos cuidadas (Henriques 2006: 82). Segundo a autora do estudo, a cerâmica cinzenta evidencia características enquadráveis no séc. V e transição para o IV a.n.e. (ibd). O registo das ânforas (tabela 9) demonstra essencialmente formas cuja produção e consumo se centram em redor do séc. VI a.n.e., estando também presente o tipo 4 do Tejo, que parece desenvolver-se a partir do séc. V a.n.e. em diante; e do tipo 7, que surge em contextos entre os séculos IV/III a.n.e. em diante.

A cronologia absoluta relativa a este nível foi publicada com a referência «Alm 6». Os resultados calibrados deram intervalos entre os meados do séc. VIII e os meados do séc. IV cal BC (Barros e Soares 2004: 341). Mais relevante parece ser mencionar a intersecção, muito próxima em ambas as datações, centrando-se nos últimos momentos do séc. V cal BC (408 e 427) (ibd), coincidindo assim com os dados das ânforas e da cerâmica cinzenta. Para esta cronologia entre o séc. V/IV a.n.e. concorre ainda a presença de um fragmento inédito de fundo de cerâmica ática de verniz negro (Barros e Soares 2004: 339) que, em Portugal, surge com maior frequência em contextos do séc. IV a.n.e. (Arruda 2007: 139).

O conjunto dos dados publicados até ao momento permite assim supor uma cronologia de enchimento que se prolonga entre o séc. V e o IV a.n.e. Em particular, a presença de uma ânfora do tipo 2 do Tejo no contexto «Alm 11», torna difícil recuar para cronologias anteriores ao séc. V a.n.e. Do mesmo modo, a existir uma fase de ocupação anterior à abertura da fossa – algo que também necessita de esclarecimentos, uma vez que foi assumido que a fossa teria sido aberta no substrato geológico (Barros et al. 1993) –, esta fase também não parece ser tão antiga como foi defendido, atendendo à presença de formas de meados do milénio.

Esta análise realça assim a necessidade de confrontação do radiocarbono com as informações dos conjuntos cerâmicos, já que só uma leitura conjunta dos dados, apoiada num registo estratigráfico sólido e coerente, possibilita conclusões consistentes.

Tabela 10. Quadrado B5 (outros contextos) - distribuição dos tipos anfóricos (NMI).

Camada/Forma

1.C

4

7

1

1

2

1

6

3

7

1

1

12

1

1

Tabela 11. Quadrado B6 (outros contextos) - distribuição dos tipos anfóricos (NMI).

Camada/Forma

1.B

1.C

3

4

2

1

3

1

5

1

1

2

1

8

1

10

1

1

1

s/c

2

1

Tabela 12. Quadrado C6 (outros contextos) - distribuição dos tipos anfóricos (NMI).

Camada/Forma

1.C

3

2

1

3

2

Tabela 13. Quadrado J29 (outros contextos) - distribuição dos tipos anfóricos (NMI).

Camada/Forma

1.B

1.C

3

6

1

7

1

1

3

11

1

s/c

1

2

Tabela 14. Quadrado C4 (outros contextos) - distribuição dos tipos anfóricos (NMI).

Camada/Forma

1.B

1.C

3

4

10.1.2.1

1

1

5

2

1

7

1

9

2

3

3

10

1

1

1

12

1

13

1

17

1

19

3

1

4. O conjunto anfórico da Quinta do Almaraz no âmbito da produção de ânforas no Baixo Tejo durante o 1º milénio a.n.e.

Os dados que resultaram desta análise revelam não só um importante contributo para a caracterização da dinâmica do povoado da Quinta do Almaraz, como também para a compreensão da produção anfórica do estuário do Tejo.

Antes de mais, pelos elementos que trouxeram para solidificar a tipologia elaborada para as produções anfóricas desta área que, num primeiro momento, ficou fortemente marcada pela «reprodução» dos contentores anfóricos do Sul peninsular - particularmente os da série 10 de Ramon Torres (Sousa e Pimenta 2014: 305).

O conjunto de Almaraz autorizou também uma primeira proposta de variantes para o tipo 1 do Tejo, já que é o mais representado no local. Ainda que tenha sido possível perceber algumas das alterações a que este primeiro modelo foi sujeito ao longo do seu extenso período de produção, sublinha-se a necessidade de obter mais dados de carácter estratigráfico que permitam o devido enquadramento cronológico das diversas variantes. No entanto, pelas informações disponíveis até à data, parece certo que a sua produção se iniciou num momento consideravelmente antigo no âmbito da influência fenícia no Ocidente da Península Ibérica, concretamente entre os finais do séc. VIII e o VII a.n.e. (Sousa e Pimenta 2014: 305), como sugerem os dados da primeira variante definida para o tipo 1.

Este desenvolvimento precoce de uma produção anfórica revela que o estuário do Tejo desenvolveu, logo nos primeiros momentos da influência mediterrânea na zona, uma autonomia económica e capacidade de auto-abastecimento, formando uma estrutura económica consolidada, que desde cedo se tornou praticamente independente da esfera do comércio mediterrâneo. Esta desvinculação torna-se ainda mais evidente a partir de meados do milénio (Arruda 2005a: 105), tal como indicam a escassez de importações anfóricas no estuário do Tejo durante a segunda metade do 1º milénio a.n.e. (Sousa 2014: 308) e a vestigial presença de formas tão comuns nos repertórios do Sul da Península Ibérica, como a cerâmica Kuass (Arruda 2005a: 139).

A partir do século VI e particularmente do V a.n.e., as morfologias das ânforas diversificam-se (Sousa 2014, Sousa e Pimenta 2014). O desenvolvimento da produção ficou marcado pelas similitudes com os repertórios da Alta Andaluzia e da Extremadura Espanhola, estando por definir que ligações tinham estes focos culturais com o estuário do Tejo. Ressalva-se, porém, que a evolução regional das formas, quando com uma origem comum (neste caso, as «R1»), poderia gerar modelos morfologicamente semelhantes sem que isto implicasse um contacto directo entre as diversas zonas que os produzem (García Fernández e Saéz Romero 2014: 109) – como, aliás, é possível constatar pelo modo como se desenvolveram os repertórios de todo o Sul da Península Ibérica, que evoluíram de forma análoga independentemente do contacto entre as várias áreas.

Tabela 15. Tipos anfóricos (NMI) identificados em superfície ou sem contexto (s/c).

Quadrado/Forma

1.B

1.C

2

3

4

10.1.2.1

J33

1

Q35

1

S33

1

S35

1

S37

1

S40

1

T33

1

U41

1

U42

2

V41

1

V44

1

W48

1

Y49

1

Z50

1

Base muralha (superfície)

2

1

1

s/c

1

4

Algumas características acompanham toda a produção anfórica do estuário do Tejo. Antes de mais, os conjuntos apresentam-se muito pouco estandardizados, registando-se uma grande variabilidade dentro de um mesmo modelo. Uma das características que demarca esta falta de padronização nas produções anfóricas é a grande oscilação nos diâmetros e a variabilidade morfológica dos bordos dentro de um mesmo modelo anfórico, que já tinha sido verificada no conjunto dos Correeiros (Sousa 2014: 90-108) e que pudemos igualmente constatar na Quinta do Almaraz.

Esta falta de padronização pode indicar-nos algo sobre a organização desta produção, já que o nível de estandardização está, por norma, associado à dimensão da produção, ao grau de especialização dos produtores – neste caso, oleiros –, e/ou à sua quantidade (Costin 1991: 33). Quanto menor é o número de centros produtores e maior a produção de determinado objecto dentro de cada um desses centros, mais estandardizado tende a ser o resultado (ibd). Face aos dados que possuímos para o Tejo, não é improvável que estejamos perante um modelo produtivo onde funcionariam vários centros oleiros com produções de pequena dimensão. Estes localizar-se-iam presumivelmente junto dos povoados, ou mesmo no seu interior, concentrados num sector dedicado a actividades artesanais.

Os dados que possuímos até ao momento relativos à produção cerâmica no estuário do Tejo, ainda que diminutos, contribuem para esta hipótese. Veja-se, em primeiro lugar, o caso de Almaraz, em que a identificação de pelo menos 10 prismas cerâmicos (fig. 30) se revela como um indício da existência de áreas de produção cerâmica no povoado. Na outra margem do rio, em Lisboa, é referida a presença de um forno de produção de cerâmica de engobe vermelho na colina do castelo (Arruda 2014: 523) e, na sua base, uma estrutura de combustão na Rua dos Correeiros tem sido interpretada como forno cerâmico (Sousa 2014: 85) - ainda que a funcionalidade desta estrutura não seja inequívoca, visto que a sua config.ção não se enquadra nas tipologias conhecidas para os fornos de produção cerâmica do 1º milénio a.n.e. e, além do mais, se encontra no interior de uma habitação, numa área fechada (Mataloto 2004: 53-54).

Figura 30. Prismas cerâmicos da Quinta do Almaraz.

Esta produção deveria, no entanto, encontrar-se dispersa pelo estuário e não apenas concentrada junto aos grandes povoados. Disso é exemplo o forno de Miroiço (Cardoso e Encarnação 2013: 176), bem como os prismas da Quinta da Marquesa, recolhidos em prospecção, associados a fragmentos deformados de ânforas (Pimenta e Mendes 2010-11: 606).

Independentemente do modelo produtivo que se desenvolveu durante o 1º milénio a.n.e. no estuário do Tejo, é certo que se verificou uma grande alteração socioeconómica. A aprendizagem das novas tecnologias – o torno e estruturas de combustão que permitiam um melhor controlo do processo de cozedura – implicava necessariamente a presença de alguém que as dominasse e/ou de quem tivesse aprendido com quem as conhecia, já que não são técnicas que se apreendam apenas com base na observação do resultado (Arruda 2005a: 53). Esta transformação não se reflecte apenas na introdução das novas tecnologias, mas também numa nova mentalidade produtiva, que deixa de satisfazer uma lógica de mera auto-subsistência, de base doméstica, para passar a uma dinâmica cujo objectivo era produzir excedentes para comercialização, com um carácter mais especializado.

Mas várias questões permanecem sem resposta, nomeadamente o volume de produção, o alcance da circulação destes contentores (mercados) e, claro, o conteúdo que transportariam.

Quanto à discussão sobre o alcance da circulação das ânforas produzidas no estuário do Tejo, os dados são ainda insuficientes, embora se assuma que os circuitos de distribuição destes contentores tenham tido uma escala essencialmente regional (Sousa e Pimenta 2014: 313). Na margem Norte da foz do estuário, recentes abordagens aos sítios arqueológicos do 1º milénio a.n.e. demonstraram uma grande homogeneidade nos espólios, porventura resultado de um comércio dinâmico, particularmente entre o que tem sido interpretado como o grande povoado dessa margem (Lisboa) e os núcleos mais pequenos, localizados nos concelhos da Amadora, Sintra e Oeiras (Sousa 2014). Foi também mencionada a existência de conformidades morfológicas entre os tipos produzidos no Tejo e alguns exemplares do Sado, do noroeste da Península Ibérica e até do Alentejo (Sousa e Pimenta 2014: 313), ficando por definir a origem do fabrico dos exemplares em questão. Por outro lado, com a presente abordagem, também se tornou clara a semelhança do repertório anfórico de Almaraz com o dos sítios da margem Norte do estuário, inclusivamente ao nível dos fabricos, o que evidencia a profunda ligação entre as duas margens – e, em particular, entre Almaraz e Lisboa, algo que tem sido salientado por outros autores (Arruda 1999-2000: 223, Sousa 2014: 309).

O tema dos conteúdos, por sua vez, é um dos que tem registado menos avanço na investigação relativa às ânforas na fachada atlântica peninsular. Se é verdade que raras vezes se recolhem restos do conteúdo no interior dos recipientes, também já ficou por demais demonstrado que o mesmo modelo de ânfora pode ter transportado diferentes produtos (p. ex.: Frutos et al. 1987, Ruiz Mata e Niveau de Villedary 1999). Particularmente durante os primeiros momentos de produção, em que se verifica uma parca variabilidade das formas, a possibilidade do mesmo modelo ser utilizado para transportar diferentes conteúdos é bastante alta (Niveau de Villedary 2011: 14-15). Apesar de existirem certos indícios, como os revestimentos interiores, que podem indiciar o transporte de produtos líquidos ou semi-líquidos (azeite, vinho ou preparados piscícolas), esses revestimentos raramente se conservam (Ramon Torres 1995: 265) e no caso das ânforas de Almaraz não houve excepção.

Coloca-se ainda a questão de ser possível uma reutilização destes recipientes que, num segundo momento de utilização, podiam ser direccionados para outros fins. A função primária das ânforas termina no momento em que a carga chega ao destino (Risueño Olarte e Adroher Auroux 1990), pelo que, posteriormente, ou eram abandonadas, ou reutilizadas, nomeadamente enquanto recipientes de armazenagem, como modelo para reprodução de formas ou mesmo como base para processamento de matérias-primas (Aubet et al. 1999: 279, Mataloto 2004: 76).

O processo de amortização de um recipiente é assim influenciado por diversos factores, sendo um deles a relação perda/recuperação - isto é, se o recipiente, no caso de ficar inutilizável, é facilmente substituído (Sáez Romero 2012: 375). As ânforas, pelas suas características intrínsecas, não permitem uma substituição célere, pelo que provavelmente continuavam a ser utilizadas durante longos períodos de tempo, adquirindo diversas funções e armazenando distintos produtos. Por todos estes motivos, torna-se difícil procurar afirmar categoricamente qual seria o conteúdo de determinada forma.

No caso das produções anfóricas do estuário do Tejo não temos qualquer indício do que poderiam transportar, em grande medida pela falta de estudos paleoambientais. É tentador referir, naturalmente, os resultados das análises polínicas realizadas no Paul dos Patudos (Alpiarça), que demonstram uma alteração significativa da paisagem em 2590 BP e indiciam um processo de desflorestação, ao mesmo tempo que os pólens de vitis atingem valores que podem ser reveladores de um cultivo intencional (Leeuwaarden e Janssen 1985 apud Arruda 2005a: 54).

Independentemente destes dados, e ainda que o rio Tejo e terras envolventes tenham proporcionado uma amplitude e diversidade de recursos que poderiam ser transportados nestes contentores, é impossível, para já, apontar conteúdos específicos.

5. Breves considerações sobre a dinâmica do povoado da Quinta do Almaraz à luz dos dados analisados

Apesar de todas as questões em aberto relativamente à produção anfórica no estuário do Tejo, a abordagem ao conjunto anfórico evidenciou alguns aspectos relativos à dinâmica do povoado da Quinta do Almaraz sobre os quais importa reflectir.

Destacam-se os dados relativos ao preenchimento do fosso, comentados no ponto 3.4.1. Perante a informação analisada, parece-nos improvável que a colmatação desta estrutura se tenha processado num único momento do séc. VII a.n.e., como foi defendido (Barros 2001: 14, Barros e Soares 2004: 344). Tendo em conta os dados confrontados, verifica-se que estão presentes, no seu enchimento, diversas formas - de ânforas, cerâmica de engobe vermelho e cerâmica cinzenta - que remetem para cronologias posteriores ao momento de preenchimento referido. Além do mais, se considerarmos as já mencionadas diferenças entre a cronologia “tradicional” e a do radiocarbono, verificamos que o enquadramento dos artefactos analisados coincide, em vários casos, com os intervalos sugeridos pelas datações absolutas.

Deste modo, e tendo em consideração os processos de colmatação de estruturas negativas discutidos anteriormente, revela-se mais provável que o fosso tenha tido um preenchimento progressivo, situável, com base nos elementos mais recentes do seu enchimento, entre o séc. VI e o séc. V a.n.e., num processo que levou à integração de elementos mais antigos; ou, por outro lado, num processo de colmatação mais lento e prolongado no tempo, associado a fenómenos de reaberturas e reutilizações, que apenas viria a terminar no intervalo referido.

Não obstante, se admitirmos que o fosso teria uma outra função inicial, prévia ao momento em que foi utilizado como «lixeira», então assumimos naturalmente que já estaria em utilização antes do início do seu preenchimento. Por outro lado, a construção de uma estrutura desta dimensão implica manifestamente um grande esforço social, pelo que o povoado já tinha de ter algum potencial demográfico nos momentos que antecederam a construção do fosso. Deste modo, como já tinha sido admitido por outros autores (Arruda 2005a: 31), não é impossível que o povoado tenha estado ocupado sob influência orientalizante desde a primeira metade do séc. VIII a.n.e. (ou até antes), ainda que continuem a faltar os dados concretos que confirmem a sua ocupação durante esse momento.

Tendo em conta a representação dos vários modelos de ânforas e a peculiar presença dos tipos que se desenvolvem entre o século VII e os inícios do V a.n.e., o povoado parece assim ter assistido a um grande dinamismo durante esse período. Os dados relativos aos modelos anfóricos mais tardios, especificamente aqueles cuja produção se desenvolveu a partir do século V a.n.e. em diante, indicam que o povoado terá perdido alguma vitalidade, não sendo perceptível se Almaraz se encontrou ocupado ao longo de toda a segunda metade do 1º milénio a.n.e.

Coloca-se, por fim, a questão da relação que o povoado da Quinta do Almaraz estabeleceu com os sítios da margem esquerda da foz do Tejo. É possível que, num primeiro momento, Almaraz tivesse efectivamente alguma preponderância sobre os restantes sítios do seu território imediato, mas os dados que apontam para a perda de algum dinamismo por parte do povoado ao longo do século V a.n.e. sugerem um cenário político-económico distinto durante os momentos finais do 1º milénio a.n.e., que ainda não é possível entender. Esta trata-se, porém, de uma mera reflexão, que só um estudo exaustivo do conjunto da Quinta do Almaraz, bem como dos restantes vestígios da Idade do Ferro da margem esquerda do estuário, permitirá compreender.

Agradecimentos

Ao Luís Barros pela disponibilização dos dados relativos a Almaraz. À Prof. Doutora Ana Margarida Arruda pela orientação da tese que deu origem a este trabalho e revisão do presente artigo. À Elisa de Sousa, Rui Mataloto e Fernando Henriques pela revisão crítica e importantes sugestões que deram a este trabalho.

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Recepción: 28 de julio de 2017. Aceptación: 20 de noviembre de 2017