Cidade e Antropoceno: Rupturas Conceituais e Horizontes de Reconfiguração Urbana
Manoel Rodrigues Alves1, Julio Arroyo2
1Instituto de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, Brasil mra@sc.usp.br https://orcid.org/0000-0002-6935-0477
2Universidad Nacional del Litoral, Santa Fe, Argentina jarroyo47@hotmail.com https://orcid.org/0000-0002-7852-1629
https://dx.doi.org/10.12795/astragalo.2025.i40.01
Certos momentos da história são vividos de forma precipitada, como se fossem o efeito de uma vertigem produzida por uma brusca aceleração que faz explodir ordenamentos até então relativamente estáveis dentro de sua intrínseca complexidade. Quando se repetem episódios de migrantes e deslocados por guerras, fomes ou desesperança, multiplicam-se fenômenos climáticos extremos e os desenvolvimentos científico-tecnológicos sinalizam uma mudança civilizatória que compromete a ética humanista. A experiência de estar vivendo um tempo histórico de transição se instala com força.
Esse tempo é o da contemporaneidade, entendida como condição histórica e pauta cultural. Ele reformula problemáticas e introduz novos temas de estudo, condicionando a revisão de procedimentos e marcos teóricos aparentemente consolidados. A consciência de viver em novas eras abre hipóteses de transição em direção a um mundo pós-humano no qual a cidade e o território, o espaço público e as práticas sociais, a arquitetura e a estética da vida cotidiana se colocam como o fim de um ciclo histórico, dando lugar a um estado diferente.
Esse tempo da contemporaneidade está historicamente determinado pelo capitalismo financeiro, transnacional e neoliberal, pelas crises ambientais e humanitárias, pelo incremento da desigualdade e da iniquidade e pelos desenvolvimentos da tecnologia e da cultura digital. Os processos que o constituem afetam o planeta e a humanidade em seu conjunto, o que não constitui em si mesmo uma novidade, se não fosse pelo fato de que agora os fatores antrópicos são determinantes. Portanto, epistemologias, heurísticas e axiologias até agora estabelecidas revelam-se insuficientes e obrigam a olhar com renovada atenção o mundo em transição com o qual nos deparamos.
Giorgio Agamben refere-se à contemporaneidade como algo que, estando inscrito no tempo cronológico, irrompe dentro dele e o transforma. E acrescenta que essa urgência é a intempestividade, o anacronismo que nos permite agarrar nosso tempo sob a forma de um “cedo demais” que é, também, um “tarde demais”… (Agamben 2008). O sujeito contemporâneo é obrigado a
…perceber na escuridão do presente essa luz que busca alcançar-nos e não pode fazê-lo; isso significa ser contemporâneo. Significa ser capaz não só de manter fixa a mirada na escuridão da época, mas também perceber naquela escuridão uma luz que, diretamente, dirigindo-se a nós, se afasta infinitamente de nós (Agamben 2008, 16).
O sujeito contemporâneo parece estar constrangido a viver em um destempo e, no entanto, se agarra àquilo que o desconcerta e o excede, entrevendo nas complexidades do presente alguma verdade que, contudo, não consegue discernir, posto que um homem inteligente pode odiar seu tempo, mas entende em cada caso pertencer-lhe irrevogavelmente; sabe que não pode escapar ao seu tempo (Agamben 2008, 13).
Atracados nesse tempo, torna-se necessário prestar atenção a dois processos em curso que sintetizam grandes linhas críticas da contemporaneidade: por um lado, as alterações ecossistêmicas, observáveis tanto nos ambientes naturais ameaçados pela ação antrópica; e, por outro, as transformações sociais e culturais do mundo humano devido, entre outras causas, ao desenvolvimento da tecnologia digital.
Cidades ampliadas como territórios urbanos se propõem como os âmbitos de observação do presente. São os espaços onde, com maior intensidade, se dramatiza a contemporaneidade, mas também espaços de novas oportunidades para repensar o sentido da emancipação e do bem viver. Nas cidades se aglomera a metade da humanidade, cruzam-se as grandes tendências que anunciam uma mudança de época e tomam corpo, na vida cotidiana, as crises existenciais. Ali também se cruza a ordem intangível e volúvel das ideias com a ordem inercial das coisas físicas — contemporaneidade.
Por dois sistemas, o ecológico e o ambiental, chega-se à hipótese do colapso, noção que denota uma quebra, mas também um ocaso, um esgotamento. Se o termo admite por si diferentes significados lexicológicos, esses se multiplicam ainda mais quando se referem a crítica ambiental, urbana e arquitetônica. No primeiro caso, colapso como quebra, trata-se de uma falha irreversível e abrupta, de consequências pouco previsíveis; no segundo, de um processo de igual desfecho, porém gradual. Em consonância, é necessário pensar, metafórica mas também materialmente, o tempo do colapso ambiental e humano tanto como o instante da ruptura quanto como a duração de um trânsito rumo a outra era histórica. Expressão da quebra pode ser uma catástrofe atmosférica ou humana, que implica o colapso como a experiência imediata e intensa da ruptura. Mas a informatização extensiva de processos tão distintos, porém tão intimamente afetados —como os relativos ao controle social, aos meios de produção ou à logística comercial— supõe outra noção de colapso, mais afim a um processo em curso, tão difuso no espaço quanto acelerado no tempo.
Carlos Taibo, depois de analisar o conceito de colapso em distintas disciplinas, resume alguns traços caracterizadores dessa noção, entre os quais menciona:
…um golpe muito forte que transtoca muitas relações; a irreversibilidade do processo consequente; profundas alterações no que se refere à satisfação das necessidades básicas; reduções significativas no tamanho da população humana; uma perda geral de complexidade em todos os âmbitos, acompanhada de uma crescente fragmentação e de um retrocesso dos fluxos centralizadores; o desaparecimento das instituições previamente existentes e, enfim, a quebra das ideologias legitimadoras e de muitos dos mecanismos de comunicação da ordem antecedente (Taibo 2019, 31).
Das características assinaladas, a irreversibilidade é particularmente importante quando associada aos processos técnicos como os da digitalização. Mas essa irreversibilidade também ocorre quando em uma sociedade se naturalizam processos cujos efeitos negativos, ainda que conhecidos, são tolerados. Poderia ser o caso da exploração abusiva de recursos naturais, cujas consequências parecem distantes para o comum das pessoas comprometidas com os avatares da vida cotidiana. O irreversível associa-se então tanto à mudança definitiva ocorrida quanto à adaptação gradual e inadvertida à mudança.
A afetação antrópica do planeta tem sido amplamente abordada a partir de variados campos disciplinares. Há consenso em assinalar o risco de que ocorram mudanças irreversíveis em escala planetária que colocariam em crise as próprias condições de vida. O efeito estufa, a consequente mudança climática e o aquecimento global geraram uma sequência de alterações sistêmicas tais como perda da biodiversidade, acidificação e incremento do nível dos mares, desertificação de terras, fenômenos climáticos extremos etc., cujas consequências se percebem no tempo limitado da vida humana.
Essas ações se fazem presentes no debate de conceitos sobre o antropoceno (Latour 2017), capitaloceno (Moore 2022), chthuluceno (Haraway 2019), termos que, para além do debate que abriram há mais de duas décadas, denunciam a primazia do humano na relação humanidade/terra, cultura/natureza, sociedade/ambiente. Essa primazia está profundamente ancorada na metafísica sobre a qual se eleva o andaime do Ocidente, que necessita estabelecer hierarquias e domínios para construir a verdade do mundo. A crítica ecológica que vem denunciando os danos causados pela humanidade ao planeta não escapa dessa condição metafísica e, por isso, permanece neutralizada e perde efetividade, como demonstram os fatos. Abre-se, em consequência, um debate urgido pela crise ambiental que reconhece vários frentes e autores, alguns dos quais são comentados para contextualizar a questão dos colapsos.
Bruno Latour reconhece o problema, mas propõe uma nova perspectiva ética e filosófica que parte de superar as dicotomias e as antinomias que levaram a compreender a natureza como o termo subordinado na relação, devido à superioridade ontológica do humano. Ao contrário, Latour propõe essa relação como uma continuidade e a sintetiza na noção de Gaia, entidade que descreve como:
…um sistema evolutivo, sistema composto, por um lado, por todos os objetos vivos e, por outro, por seu ambiente superficial: oceanos, atmosferas, crosta terrestre, estando as duas partes estreitamente acopladas e indissociáveis. Trata-se de um domínio emergente no curso da evolução recíproca dos organismos e de seu ambiente ao longo de milhares de milhões de anos de vida sobre a Terra. Nesse sistema, a autorregulação do clima e da composição química é inteiramente automática. A autorregulação emerge à medida que o sistema evolui, o que não implica previsão, nem antecipação, nem teleologia (Latour 2008, 155).
Em Gaia não há primazia do humano; tampouco da Natureza (um constructo humano que reduz o natural a um recurso disponível), mas sim uma entidade alheia às determinações de intencionalidade subjetiva, à teleologia do progresso e à razão instrumental. Essa compreensão não apenas desloca radicalmente a dicotomia como, mais importante ainda, a centralidade metafísica do humano. Ao fazê-lo, também se afasta da crítica ecológica, pois, ainda que proponha ações de restauração e mitigação dos danos provocados, não alcança efetividade, já que permanece presa à antinomia Homem versus Natureza que, precisamente, é causal da crise.
Ao argumentar uma mudança de visão tão radical, Latour alcança uma melhor correspondência com a magnitude do problema que Gaia enfrenta, mas isso implica abandonar paradigmas e avançar em uma transição rumo a outros ainda por descobrir (Pardo 2011), tão profunda que obriga à revisão de todos os campos do conhecimento construídos na modernidade, da geologia e da biologia à filosofia e às humanidades, passando pelas engenharias, tecnologias e artes. Essas mudanças são necessárias, porém imprevisíveis, no contexto da guinada à direita na política internacional.
Jason Moore, reconhecendo a utilidade do conceito de antropoceno para interrogar a problemática ambiental, não encontra nele capacidade de resposta. Por isso introduz outros vieses para explicar a crise ambiental para além da ideia da Aritmética Verde, segundo a qual nossas histórias podem ser narradas e consideradas como adição de Humanidade (ou sociedade) e Natureza, ou até Capitalismo e Natureza (Moore 2016, 2). Ele propõe o conceito de capitaloceno como a convergência de poder político, recursos naturais e acumulação de capital em uma unidade dialética instável (Moore 2016, 4) que explica a crise atual.
Desde os primórdios do capitalismo, explica Moore, o sistema produziu um barateamento da natureza em duplo sentido: assumindo que a natureza é uma fonte ilimitada de recursos que, por sua abundância, têm baixo preço; e degradando a entidade ético-política da natureza e, por extensão, de certos humanos reduzidos a uma condição de inferioridade similar à dos recursos naturais (Moore 2016, 2). Processos sociais tais como imperialismo, capitalismo, industrialização, mercantilização, patriarcado, racismo (Moore 2016, 4) geraram essa compreensão desvalorizada da natureza e de certas vidas humanas, o que permitiu que o capitalismo se desenvolvesse mediante a superposição de processos humanos e naturais:
O capitalismo se baseou em excluir a maioria dos humanos da humanidade: povos indígenas, africanos escravizados, quase todas as mulheres e até muitos homens de pele branca (eslavos, judeus, irlandeses). Eles foram considerados como parte da natureza, junto com árvores, solos e rios, e tratados em consequência (Moore 2022, 79).
Moore assinala que essa compreensão do humano separado da natureza e, dentro dela, alguns seres humanos novamente excluídos, mostrou-se altamente produtiva para o desenvolvimento do sistema nos últimos 500 anos. Por isso existe uma relação ineludível entre mudança ambiental e processos político-sociais de classe, raça, gênero, sexualidade, nacionalidade, que podem ser compreendidos como inerentes à natureza (Moore 2022, 78). Para o autor, o momento exige pensar sobre:
…como passar de fazer a ecologia política do colonialismo, do neoliberalismo ou de algum outro processo social a entender esses processos sociais que são centrais na modernidade —como a acumulação de capital, o colonialismo, a construção nacional, a formação do Estado-nação— como processos e projetos socioecológicos em si mesmos (Moore 2022, 108).
Para tanto, exige-se reconhecer que os problemas do mundo não foram causados pela humanidade genérica, como se depreende do conceito de antropoceno, mas sim pelo capitalismo, que não atua apenas sobre a natureza, mas sobre o tecido da vida — noção com a qual abarca tudo o que os humanos fazem dentro de uma totalidade maior, reconhecendo, contudo, que a espécie humana tem alta capacidade de produzir ambiente, a ponto de se aproximar de processos biológicos e geológicos. Olhar a crise desde o capitaloceno supõe, portanto, assumir novas concepções éticas e políticas que, tomando como referência movimentos ecologistas, feministas, pós-coloniais e sindicais que representam posições de resistência e enfrentamento ao sistema, propiciem —a partir do trabalho do cuidado e do trabalho propriamente reprodutivo— a integração de uma ecologia-mundo.
Donna Haraway (2019) propõe a noção de chthuluceno para explicar a inter-relação e a responsabilidade recíproca das espécies no tecido da vida, entre as quais se encontra, sem hierarquia que a destaque, a humana. Ela convida a compreender o mundo como uma trama de relações simbióticas e tentaculares entre humanos e não humanos em um momento em que a vida na Terra se vê ameaçada. Propõe o conceito de sim-poiesis, implícito no de chthuluceno, que significa fazer e sentir com outros, entre outros, negando assim a auto-poiesis dos seres. O termo não é novo, mas somado a outros, como o ciborgue —um espécime híbrido de humano e cibernético— abre a possibilidade de pensar uma condição trans-humana. Soma-se a isso a crítica feminista, da qual Haraway é grande protagonista, tornando-se uma referência intelectual polifacetada e assertiva para gerações jovens que já não encontram nas categorias fixas e métodos dialéticos uma forma válida de crítica. Também aqui se faz necessário um profundo deslocamento ético e epistemológico, mas permanece em suspenso quais são as estratégias pós-ideológicas para passar do discurso à ação.
Uma Gaia autopoiética, uma ecologia-mundo, um mundo multiespécie são algumas das noções que se acumulam em favor de um novo constructo acadêmico para enfrentar a dimensão ambiental do colapso. Essas noções têm em comum o fato de que a história humana se mede com uma história dos não humanos em um mesmo plano ontológico, que é preciso começar a reconhecer para poder agir em consequência.
A expansão das ciências da informação, da cibernética e da computação provocou um giro civilizatório que demanda uma revisão do estatuto do real e da condição física da realidade frente à possibilidade de existência de um outro mundo que modifica as formas de relacionamento das pessoas entre si e com as coisas do mundo material. O acoplamento desses desenvolvimentos tecno-científicos entra em sinergia, além disso, com os de outros campos do conhecimento, como as neurociências, a física quântica e as nanotecnologias, cujos efeitos se potencializam alterando significativamente os parâmetros do real.
A velocidade com que essas tecnologias se expandiram pelo mundo por meio da internet das coisas (IoT) e seus dispositivos em redes que recobrem o planeta é decisiva. De fato, a possibilidade de que o conceito de real se amplie até aceitar que a vida —humana e não humana— pode transcorrer não só na realidade atual, mas também em uma realidade ampliada e até em outra virtual, é concreta. A experiência de ubiquidade e a virtualidade das relações expõem as pessoas a situações distópicas e discrônicas que requerem novas competências perceptivas, cognitivas e valorativas.
Essa expansão acelerada das tecnologias digitais ignora, assim como os capitais financeiros, as fronteiras políticas e alcança de maneira indiscriminada vastos corpos sociais em todas as regiões geoculturais do planeta. Grandes grupos populacionais, envolvidos em seus próprios processos socioeconômicos e culturais, incorporam —ou aspiram incorporar— os meios digitais, mas o resultado é inevitavelmente a geração de novas formas de iniquidade e desigualdade, por um lado, e um conflito cultural, por outro, com impacto particular nos países menos desenvolvidos.
O modo extensivo e intensivo de difusão do digital em rede, por sua vez, modificou a cultura do habitar devido às noções igualmente ampliadas de espaço e tempo. As pessoas transitam em sua vida cotidiana alternando entre os extremos do espaço cartesiano e do espaço cibernético, e entre os extremos do tempo cronológico e do tempo incidental, o que supõe experiências alternantes que ocorrem, na maioria das vezes, de maneira inadvertida. Essas experiências se naturalizam e se legitimam socialmente, estimuladas pelos discursos hegemônicos que promovem o individualismo e a primazia do privado. Sobre esse fundo de aceitação generalizada, a irrupção da inteligência artificial, especialmente em suas versões autogerativas, produziu uma explosão cognitiva inusitada.
Eric Sadin observa esse fenômeno com preocupação e assinala que essa tecnologia é muito mais que um recurso, passando a constituir-se em um novo fundamento metafísico da existência humana. Ele expressa assim:
Há um fenômeno destinado a revolucionar de um extremo a outro nossas existências. Ele se cristalizou há apenas uma década. Trata-se de uma mudança de estatuto das tecnologias digitais. Mais exatamente, da mudança de estatuto de uma de suas ramificações, a mais sofisticada, que se ocupa de uma função que até agora nunca havíamos pensado em lhe atribuir: a de enunciar a verdade (Sadin 2020, 17).
A capacidade dos computadores de manejar quantidades de dados inabarcáveis para a mente humana e de processá-los com velocidade inusitada para gerar uma produção insuspeitada de conhecimentos sob a forma de textos, imagens ou sons leva-o a supor que:
O digital erige-se como uma potência aletêutica, uma inteligência consagrada a expor a aletheia, a verdade, no sentido em que a filosofia grega a definia como desvelamento, como um órgão habilitado para periciar o real de modo mais confiável do que nós mesmos, assim como para revelar dimensões até agora ocultas à nossa consciência (Sadin 2020, 17).
Tal situação foi possível porque essas transformações tomaram um caminho antropomórfico ao imitarem as redes neurais do cérebro humano. Os desenvolvimentos alcançados significaram que a tecnologia excedesse a condição de prótese ampliadora das capacidades humanas para constituir-se em um eventual substituto das próprias capacidades cognitivas, chegando inclusive a ir além da própria consciência.
Colocada essa tecnologia no contexto dominante do neoliberalismo, ela se converte em um tecnoliberalismo, em uma tecnoideologia que confunde processos cerebrais com lógicas econômico-sociais (Sadin 2020, 70). Sadin introduz um viés diferenciado na já desafiadora condição do digital —e, em particular, da inteligência algorítmica autogerativa— de constituir uma nova axiomática do real. Frente a essa situação, ele propõe expressar o desacordo e gerar contra imaginários que se satisfaçam com a contingência do devir, em oposição à vontade de dispor de um domínio integral sobre o curso das coisas (Sadin 2020, 43). Trata-se de uma proposta que implica novos enfoques políticos para enfrentar um pós-humanismo que o autor avalia como uma desvalorização histórica que compromete o próprio sentido de humanidade.
Rosi Braidotti (2015), mais do que perceber o presente como uma perda do antropocentrismo fundado no pensamento humanista clássico, focalizado no sujeito humano individual, oferece a possibilidade de pensar uma subjetividade pós-humana relacional e coletiva, com a qual seja possível reconstruir identidades mais flexíveis e múltiplas.
A crise ambiental, os movimentos sociais, as tecnologias digitais, a bioengenharia e outros desenvolvimentos igualmente disruptivos geraram campos problemáticos interseccionais tão imbricados que não permitem distinguir —nem em suas causas, nem em seus efeitos— o humano do não humano. Isso exige assumir uma epistemologia do múltiplo e práticas políticas alternativas às que os sistemas representativos admitem, capazes de priorizar a performatividade da ação direta no devir dos processos.
O feminismo de Braidotti atribui às questões de gênero, aos direitos das mulheres e à teoria do cuidado um lugar central para enfrentar com otimismo a condição crítica de uma contemporaneidade que não se conjuga nem com as categorias da modernidade nem com o relativismo da crítica pós-moderna do século passado. É necessário fazer uma observação mais relacional e menos categórica dos processos, com o objetivo de gerar uma política afirmativa e uma ética da vida que articule a complexidade e a diversidade da condição contemporânea, distante de toda nostalgia por um humanismo que ela considera obsoleto.
Entre os alertas de Sadin, que vê na inteligência artificial a alienação do humano, e o ativismo de Braidotti, que dá por inevitavelmente superado o antropocentrismo, estende-se um denso debate cujos termos colocam em questão os conceitos fundamentais do Ocidente. Diante dessa suspeita acerca do esgotamento do Ocidente e do consequente colapso civilizatório que se anuncia, ganham força distintas formas de conhecimento ancestral de povos indígenas, que subsistem para além e apesar das grandes estruturas do humanismo ocidental.
Ailton Krenak (2019) aporta uma cosmovisão diferente e alternativa, centrada na harmonia da vida, em que cada ser é parte de uma totalidade viva plenamente interconectada. Nesse pleno da existência, o ser humano convive em comunidade com outros seres, inclusive os não humanos, sem necessidade nem vontade de exercer domínio sobre o mundo. A posição é tão distante da compreensão ocidental e moderna da existência humana no mundo que demanda igualmente uma nova ética. A condição indígena do autor e sua procedência amazônica lhe conferem legitimidade e credibilidade que renovam as esperanças de que o colapso possa ser evitado. Por sua vez, em afinidade, Silvia Rivera Cusicanqui (1984), referenciada na geocultura do altiplano boliviano, resgata e difunde o conceito de Bem Viver, centrado no respeito e no desfrute da vida comunal, na contemplação e no transcurso da vida em acordo com a natureza, também aqui sem aspirações de dominação nem controle. O interessante dessas cosmovisões é que, por viverem em fina correlação com a natureza, nelas não se concebe o colapso, pois a ação humana não está orientada a práticas que produzam danos.
Essas vozes se multiplicam e se amplificam propondo formas de vida que, para as grandes maiorias populacionais alcançadas pelas transformações em curso, supõem mudanças drásticas cuja possibilidade de efetivação é duvidosa, na medida em que requerem um andaime ético e epistemológico não acessível às maiorias. Boaventura de Sousa Santos e María Paula Meneses (2014) resgatam esses saberes que subsistem apesar das histórias de colonialismo, patriarcado e capitalismo, os três pilares com os quais a Europa controlou o mundo e que permitiram a construção de uma epistemologia dominante. Santos e Menese dirigem a atenção aos modos como se articulam saberes ancestrais e ocidentais para além da linha abissal que separa os saberes válidos dos saberes negados. Ele advoga por uma ecologia de saberes cuja integração só é possível no Sul.
O colapso humanista se apresenta, então, como evidência de um esgotamento, mas também como possibilidade de recuperação de saberes de variada procedência articulados, talvez facilitados, paradoxalmente, pelas tecnologias digitais.
Há um lugar em particular a partir do qual produzir a ação crítica que freie o colapso? Imediatamente o Sul Global emerge com força própria como possibilidade e restrição para o pensamento especulativo e as práticas alternativas. A maior possibilidade deriva da intrínseca conflitividade em países geralmente compreendidos sob a categoria do Sul Global, em que as desigualdades e iniquidades alcançam níveis mais altos. Ali, as estruturas do sistema são mais flexíveis, permitindo que processos de distinta entidade e escala —do planetário ao local, do estrutural ao conjuntural— se articulem, dando lugar a hibridações e mestiçagens que já são parte de sua história política e cultural. Essa conflitividade é, da mesma forma, condição de possibilidade para o surgimento de práticas de contestação e resistência dentro de um clima de urgências e debates abertos, de ativismo e protesto que, no entanto, não alcançam organicidade suficiente para produzir mudanças significativas.
Ao mesmo tempo, essas hibridações e mestiçagens, vistas como multiplicidades que resistem a antinomias e dialéticas, são possíveis em qualquer lugar e momento em que a conflitividade sistêmica se intensifique a ponto de mobilizar à ação. A particularidade introduzida pelas transformações em curso é que essas ações já não dependem exclusivamente de situações categórica e estruturalmente determinadas, mas de situações conjunturais que produzem efeitos no devir dos processos. Trata-se de ações que oscilam entre distintos conceitos do real, facilitadas por suportes tecnológicos e novos corpus conceituais que permitem olhar para além do humano, inaugurando horizontes de possibilidade a partir dos quais pensar, com preocupação mas sem medo, os eventuais colapsos da contemporaneidade.
É nesse contexto que o colapso ecossistêmico e humanista implica um giro epistemológico associado à reflexão sobre os fundamentos, limites e procedimentos do conhecimento. Trata-se de um deslocamento na maneira como o conhecimento é produzido e legitimado em diferentes campos do saber. Este número de Astrágalo destaca não só o que sabemos, mas como o sabemos, propondo enfoques contextualizados pela noção de Sul Global, que consideram o conhecimento como algo que não se encontra separado do contexto social, político e cultural no qual é produzido.
Em uma natureza do saber situado, o giro ecossistêmico e humanista não nega o conhecimento científico ou factual, mas o reinterpreta, sublinhando como ele é influenciado pelo contexto histórico, social e cultural. Aníbal Quijano (2000) diferencia o colonialismo —evento histórico específico de conquista e dominação territorial— da colonialidade —um padrão de poder, conhecimento e classificação social que continua sustentando relações de dominação depois do fim do colonialismo formal—, e da colonialidade do poder como processo no qual as estruturas coloniais de poder seguem operando na modernidade.
Nesse sentido, a hegemonia epistemológica ocidental se expressa, entre outros aspectos, na reprodução de modelos impostos ou adotados nos países do Sul Global, a partir de referenciais estabelecidos pelo Norte Global. Para Farrés Delgado e Matarán (2012), a colonialidade territorial se manifesta em três dimensões inter-relacionadas: a colonialidade do ser territorial, do conhecimento territorial e do poder territorial. Também nesse sentido, para Walter Mignolo (2007), descolonizar não é apenas uma questão teórica, mas também uma práxis e uma ação política que questiona as estruturas de saber, poder e violência, compreendendo uma prática de resistência e de re-existência de saberes, como promovem Ailton Krenak e Silvia Cusicanqui, que diferenciam as epistemologias do Norte eurocêntrico das epistemologias do Sul Global, destacando a necessidade de repensar os modos de produção do conhecimento para transformar práticas e saberes.
Enfrentar o colapso ecossistêmico e humanista é uma oportunidade para repensar o conhecimento não como algo dado, mas como uma prática situada que abre possibilidades para novas formas de compreender e transformar a realidade. Os processos urbanos contemporâneos exigem o entrelaçamento de perspectivas provenientes de diferentes campos do saber, explorando contrapontos e buscando estabelecer um diálogo analítico em torno dos diversos processos de produção e conformação do espaço. Desse modo, interrogam-se os marcos teóricos relativos às tensões e linearidades na ressignificação do espaço urbano, ampliando a compreensão de seus processos de produção e configuração.
A cidade atual, expressão do poder do capitalismo globalizado, se produz no deslocamento da tríade cidade–trabalho–política para cidade–gestão–negócio. Perguntamos: quais são as possibilidades e limitações do Sul frente à complexidade das tendências contemporâneas que supõem uma transformação civilizatória significativa? Em que medida o Sul Global propõe, ou pode propor, uma epistemologia situada, adequada para enfrentar os desafios do momento coetâneo? O que emerge desse giro como desenvolvimento dessa epistemologia em relação aos valores, elementos e procedimentos de disciplinas projetuais como a Arquitetura?
Atentando para uma ecologia de saberes do Sul Global, possível e necessária, os textos deste número de Astrágalo desenvolvem uma visão transversal sobre o espaço urbano, suas transformações e suas múltiplas dimensões. Em um contexto de mudanças irreversíveis, em maior ou menor medida gerais e abruptas, Astrágalo propõe a leitura em quatro giros: “Arquitetura, Limites e Transformações”, “Arquitetura, Gênero e Alteridade”, “Arquitetura, Natureza e Cultura” e “Arquitetura, Projeto e Sociedade”.
No primeiro, Beatriz Toscano apresenta o artigo Can Architecture repair the planet?: fractures, discontinuities, synchronies and other epistemological dislocations necessary for the post-carbon city, no qual interroga os limites da arquitetura propondo o abandono de projeções utópicas de um futuro descarbonizado. Enrique Ferreras Cid, em Dialécticas de la Autenticidad: neopopulismo arquitectónico en América Latina contemporánea y estrategias de legitimación global, examina as transformações contemporâneas do projeto arquitetônico latino-americano em um momento em que as categorias de resistência cultural foram transmutadas em dispositivos de acumulação simbólica, revelando como a dialética modernidade–tradição converteu-se em um simulacro no qual a especificidade local funciona como efeito comunicativo. Portanto, propõe o conceito de americopolitanismo, com o qual articula três dimensões analíticas: a inversão sistemática das categorias do regionalismo crítico; os mecanismos de produção de autenticidade como mercadoria; e as operações de neutralização da diferença cultural mediante sua codificação global. Renan Duarte Specian, João Marcos de Almeida Lopes e Henrique Duarte Ferrari, em Vivência Mineral: uma reflexão sobre a produção das cidades no Sul Global a partir da cadeia produtiva da indústria da construção, investigam como a arquitetura é produzida hoje e em que medida a exploração do trabalhador e da natureza está associada a um pensamento colonizador dentro do qual a cadeia produtiva da indústria da construção é uma ferramenta útil para o capitaloceno.
No segundo giro, Javiera Francisca Palacios Olivares publica Territorios no Binarios: hacia una espacialidad disidente desde el Sur Global, texto no qual propõe o território não binário como ferramenta crítica para repensar e transformar nossos espaços, compreendendo o território como um ente vivo, fundado na interdependência, no afeto e na responsabilidade coletiva. Utilizando uma metodologia qualitativa, explora dois casos, Valparaíso e o Wallmapu mapuche (Chile), para trabalhar expressões territoriais dissidentes que resistem a lógicas de controle e homogeneização. Por sua vez, Mathias Velasco, em La muerte del otro o la externalización del riesgo, problematiza a insensibilidade coletiva diante das crises globais e da ameaça de extinção, analisando como dinâmicas filosófico-existenciais convertem-se em condições intrínsecas do capitalismo moderno e do colonialismo ecológico. O artigo apresenta dados empíricos e explora como a fragmentação e a dominação territorial têm sido ferramentas do colonialismo interno e da marginalização de povos indígenas, com a arquitetura e o urbanismo desempenhando um papel chave na materialização dessas violências.
No giro 3, “Arquitetura, Natureza e Cultura”, Carlos Gómez Sierra assina o artigo intitulado Esteros del Iberá. Entre la poesía ambiental y la práctica posthumana, no qual explora esse ecossistema como um laboratório para investigar as conexões entre ecologia, cultura e natureza; baseado na poesia metafísica e surrealista de Francisco Madariaga, ele tensiona interconexões e transbordamentos entre o humano e o não humano, entre teorias globais e poéticas locais que se apresentam como estratégias possíveis para uma melhor compreensão dos fenômenos atuais a partir de um olhar local. Sylvie Nguyen, em The Hybrid Network Model for a Water Ecosystems Paradigm Shift in the Vietnamese Mekong Delta, analisa as transformações derivadas da ação humana no território do Delta do rio Mekong utilizando uma análise cartográfica para identificar as configurações territoriais dominantes; o trabalho revisa os sistemas socioecológicos como instrumentos para fomentar a resiliência mediante a integração dos meios de subsistência, das infraestruturas e dos ecossistemas naturais. No último texto desse giro, Alternativas relacionais entre espécie vegetal e humana para una continuidad sob una perspectiva pós-humanista e ecológica, Juan Carlos Zambrano Pilatuña, Indira Yajaira Salazar Silva e Serafina Amoroso analisam, a partir de um olhar transdisciplinar, a relação entre a espécie humana e a vegetal no contexto do Antropoceno, propondo três estratégias críticas que configuram espaços de resistência frente à instrumentalização da natureza; oferecem, ademais, plataformas para imaginar futuros mais justos: o uso de vegetação endêmica, a aplicação do princípio de mínima intervenção e a integração de saberes ancestrais.
Por fim, no giro 4, Isabela Batista Pires e Anja Pratschke, no texto Participação Social como Sistema Adaptativo: reflexões acerca de uma ecologia autopoiética participativa para o planejamento urbano, analisam a participação social no planejamento urbano a partir da perspectiva da complexidade sistêmica, com ênfase no conceito de autopoiese. Propõe-se, portanto, compreender a participação social como um sistema autopoiético, capaz de regenerar práticas coletivas e fomentar a cidadania autônoma, contribuindo para a implementação de uma transformação socioecológica. No último texto deste número, El Viable Inédito: directrices para enfrentar el colapso eco sistémico y social en el Frente Fluvial de Asunción, Juan Carlos Cristaldo Monis de Aragao, Silvia Paola Arévalo Ferreira, María Auxiliadora Benítez Fernández e Guillermo Bretes apresentam diretrizes para a urbanização resiliente e sustentável em Assunção a partir de dois casos de estudo: a frente fluvial da cidade de Villa Hayes e o setor entre Atá Pitá Punta e o Porto Velho de Assunção, na margem esquerda do rio Paraguai; em ambos os casos problematizam um urbanismo insustentável de privatização do acesso ao rio e de destruição de áreas úmidas. Metodologicamente, o artigo utiliza o mapeamento sistemático dos dois casos para identificar tendências e processos-chave e propor diretrizes para o desenvolvimento de projetos urbanísticos sustentáveis.
Boa leitura.