Revista Comunicación, Vol. 21, N.º 2, año 2023, pp. 96-111

DOI: https://doi.org/10.12795/Comunicacion.2023.v21.i02.06

// ARTÍCu­lo

O canto das vozes esquecidas: as tradições orais no cinema
de Assia Djebar

El canto de las voces olvidadas: tradiciones orales en el cine
de Assia Djebar

Guilherme Maia de Jesus

Universidade Federal da Bahia

maia.audiovisual@gmail.com

Morgana Gama de Lima

Universidade Federal da Bahia

morganagama@gmail.com

Recibido: 16 de octubre de 2023

Solicitud de modificaciones: 14 de noviembre de 2023

Aceptado: 11 de diciembre de 2023

Resumo

Embora o envolvimento de mulheres nas revoluções africanas, especialmente na Argélia, seja um fato reconhecido no curso da história (Bedjaoui, 2020), ao observar filmes produzidos no contexto africano que buscam a reconstituição de tais acontecimentos, é possível perceber ausências quanto ao modo como essa participação feminina foi representada. Logo, no presente trabalho propomos uma abordagem em torno dos filmes La Nouba des femmes du Mont Chenoua (1975-1977) e La Zerda, les chants de l’oubli (1978-1982), realizados pela cineasta argelina Assia Djebar (1936-2015), partindo da hipótese de que tais produções além de permitirem outros modos de representação das mulheres na revolução argelina, também convidam a uma outra compreensão da narrativa histórica ao se apropriar de elementos das tradições orais como recurso retórico da narrativa fílmica (Soulez, 2011). Um processo que tem início na valorização de contos e cantos como fontes inspiradoras na composição da narrativa fílmica e que, por meio da análise, oferece possíveis contribuições sobre a forma como pensamos a oralidade nos cinemas africanos, de modo geral, e de modo específico, sobre o potencial da voz (Chion, 1992; Châteauvert, 1996), especialmente feminina, em acionar memórias, por meio da narrativa fílmica em favor da revisão de fatos históricos.

Palavras-chave: Assia Djebar, tradições orais, memória, voz.

Resumen

Si bien la participación de las mujeres en las revoluciones africanas, especialmente en Argelia, es un hecho reconocido a lo largo de la historia (Bedjaoui, 2020), al observar pelícu­las producidas en el contexto africano que buscan reconstruir tales acontecimientos, es posible notar ausencias en cuanto a la forma en que se representó esta participación femenina. Por ello, en el presente trabajo proponemos una aproximación basada en las pelícu­las La Nouba des femmes du Mont Chenoua (1975-1977) y La Zerda, les chants de l’oubli (1978-1982), dirigidas por la cineasta argelina Assia Djebar (1936-2015), partiendo de la hipótesis de que tales producciones, además de permitir otras formas de representar a las mujeres en la revolución argelina, también invitan a otra comprensión de la narrativa histórica al apropiarse de elementos de las tradiciones orales como recurso retórico en la narrativa cinematográfica (Soulez, 2011). Un proceso que comienza con la valoración de cuentos y canciones como fuentes inspiradoras en la composición de la narrativa cinematográfica y que, a través del análisis, ofrece posibles aportes a la forma en que pensamos sobre la oralidad en el cine africano, en general, y específicamente, sobre el potencial de la voz (Chion, 1992; Châteauvert, 1996), especialmente femenina, a la hora de desencadenar recuerdos, a través de la narrativa cinematográfica en pro de la revisión de hechos históricos.

Palabras clave: Assia Djebar, tradiciones orales, memoria, voz.

A memória é a voz de uma mulher oprimida (Assia Djebar, 1982)

1. Introdução

As lutas de libertação na Argélia contra o colonialismo francês atravessaram um longo período da história (1954-1962), fato que também impactou na produção cinematográfica do país, pois três anos após o início do conflito foi fundada a primeira escola de cinema em Argel, tornando a guerra de independência uma espécie de “mito fundador do cinema argelino” (Cinema Argelino, 2006, p. 26). Assim, não é de se admirar que muitos dos filmes produzidos entre as décadas de 1960 e 1970 apresentavam narrativas marcadas por histórias de resistência do povo argelino frente às investidas dos exércitos coloniais configurando o gênero que se tornou conhecido como filmes moudjahid ou “filmes de luta pela liberdade”.

Contudo, com o passar do tempo, essa abordagem da guerra começou a apresentar limitações. A primeira delas era a de que, apesar de todo sofrimento com as lutas de libertação, encenar histórias inspiradas apenas nos anos de conflito armado antes da independência, nos “anos de fogo”, não apontava para perspectivas de mudança no presente ou no futuro. A institucionalização do tema de guerra havia esvaziado a sua própria potência histórica. Além disso, ao observar filmes que buscavam a reconstituição de tais acontecimentos, era possível perceber lacunas quanto ao modo como essa participação feminina foi representada.

É nesse contexto que no presente trabalho propomos uma abordagem dos filmes realizados por Assia Djebar (1936-2015), uma das pioneiras do cinema argelino, partindo da hipótese de que tais produções além de promoverem um agenciamento das mulheres na história da revolução da Argélia, também convidam a uma nova compreensão da narrativa histórica ao se apropriar de elementos das tradições orais (contos e cantos) como recurso retórico1 da narrativa fílmica, ou seja, não somente representando as tradições orais no cinema, mas utilizando-as como base para que o público construa um discurso a partir delas.

Afinal, o que dizem os contos e cantos dessas vozes esquecidas? De que modo a oralidade encenada no cinema contribui para o agenciamento da participação das mulheres na história da luta de libertação na Argélia? Considerando tais questionamentos nosso objetivo é investigar como o recurso da voz, especialmente a voz feminina, é utilizado nos filmes realizados por Assia Djebar, não somente ocupando uma função acessória em relação às imagens, mas sobretudo evocativa, inserindo memórias que, em articu­lação com os registros históricos encenados, promovem uma reescrita da própria História.

Em continuidade à investigação que articu­la aspectos da oralidade nos cinemas africanos2 e como o uso da canção popular no cinema tende a afetar o público pela via do acionamento de memórias, afetos e processos de identificação (Maia y Lima, 2022), o artigo apresenta uma revisão em torno da filmografia de Assia Djebar para, em seguida, observar a utilização da voz em seus dois filmes. Há uma vasta quantidade de estudos sobre o uso da canção como expressão cinematográfica (Maia, 2020) e considerando esse repertório, partimos do pressuposto de que as canções – aqui vistas sob a perspectiva das tradições orais – são capazes de acionar memórias individuais e coletivas para além do seu conteúdo semântico ou da identificação de informações extrafílmicas. Apesar dessas informações ocuparem um lugar relevante para a compreender tais produções, cremos que a performance vocal também é um fator que influencia sobre o poder evocativo e invocativo de palavras contadas e cantadas.

Logo, em nosso processo analítico, utilizando as categorias de Jean Châteauvert (1996), buscamos observar o modo como a voz tem o potencial de evocar, provocar a criação de imagens, por meio de contos – em uma relação predominantemente semântica com as palavras – e também tem o potencial de invocar emoções, sentimentos, por meio da canção. Ambos, partindo do uso da voz e formas pelas quais o cinema tem incorporado o legado das tradições orais (Lima, 2020).

2. Uma escritora cineasta

Mais conhecida pela sua obra como romancista, Assia Djebar é o pseudônimo de Fatima-Zohra Imalayen. Nascida em Cherchell, uma vila berbere na região do Monte Chenoua, na Argélia, Djebar além de ser uma das primeiras mulheres argelinas a investirem na produção cinematográfica3, também é considerada a primeira mulher da região do Magrebe4 a ser aceita na École Normale Supérieure De Jeunes Filles (França). Foi pioneira porque, até aquela ocasião, as únicas produções cinematográficas a darem voz para as mulheres argelinas, após a independência, foram: Elles (1966), dirigido por Ahmed Lallem com assistência de Sarah Maldoror, em que jovens mulheres falam sobre o que esperam para o futuro e a reportagem televisiva Les Filles de la Révolution (1968) produzida pela Radiodiffusion Télévision Française.

Durante a Guerra de Independência da Argélia (1954-1962) e residindo na França, Djebar trabalhou com Frantz Fanon para o jornal franco-argelino El moudjahid 5 – entrevistando refugiados argelinos na Tunísia e no Marrocos – e colaborou com a FLN (Front Libération Nationale), partido pró-revolução argelina. Antes de retornar para a Argélia e se tornar professora de história nas cidades de Rabat e depois em Argel, a então escritora já trazia consigo uma coletânea de histórias e relatos da guerra. Uma vivência que se tornou fundamental para os temas que irão atravessar seus romances e, posteriormente, seus filmes.

Após uma guerra de sete anos e com vários mortos, Djebar é aquela que vai usar da literatura para testemunhar pelas mulheres argelinas, sobretudo “aquelas que apoiaram a luta, lutaram ao lado dos homens e se viram marginalizadas e esquecidas pelos seus irmãos, assim que a independência foi adquirida” (Mortimer, 1997, p. 93, tradução nossa). Um exemplo que demonstra a relevância desse testemunho é o depoimento do pesquisador argelino Fouad Mami (2022) que admitiu tomar conhecimento da existência de Zoulikha bent al-Chaib (1916-1957), uma das heroinas da revolução argelina, apenas após ler La femme sans sépulture (2002), romance de Assia Djebar cujo título é uma referência direta ao fato de Zoulikha não ter sido enterrada após a sua morte.

Somando-se a essa obra, Assia Djebar foi autora de mais 15 produções escritas6, entre novelas, poemas, ensaios e peças de teatro, se tornando a primeira argelina a ser membro da Academia Francesa, em 2005. A decisão pelo cinema veio depois de um longo período de silêncio em que, após anos escrevendo em francês, a escritora pensou em se aproximar da língua árabe. Uma aproximação que para ela não implicava em um abandono da palavra pela imagem, mas fazer uma “imagem-som”, algo que na sua concepção seria retornar às fontes no nível da linguagem: “Continuando sua busca pela imagem-som, quer dizer, da imagem de mulheres do seu passado, do som de suas vozes recitando seus contos e cantos tradicionais, Djebar retorna à sua terra natal”. (Mortimer, 1997, p. 95, tradução e grifos nossos).

Essa busca não significa que a escritora-cineasta havia se distanciado totalmente da proposta “militante” do cinema argelino, mas indica que as suas narrativas buscavam outras fontes: “Os ecos da batalha perdida no sécu­lo passado […], residem entre os contadores de histórias analfabetos: as vozes sussurradas daquelas mulheres esquecidas desenvolveram afrescos insubstituíveis a partir deles e, assim, teceram o nosso sentido da história” (Djebar, 1994/2020, tradução nossa).

Os dois filmes dirigidos por Assia Djebar – La Nouba des femmes du Mont Chenoua (1975-1975) e La Zerda et les chants de l’oubli (1978-1982) – são produções que, além de apresentarem uma reflexão em torno da resistência da Argélia à opressão colonial, também se destacam ao convocarem as tradições orais (contos e cantos) como uma memória valiosa capaz de ressignificar acontecimentos históricos. Considerando a busca pela imagem-som da cineasta, nesses dois filmes, também se percebe que a voz da mulher, em sua pluralidade e multiplicidade de sentidos, exerce um papel significativo na mediação dessas tradições e marca a condução da narrativa.

3. As tradições orais nos cinemas africanos

Antes de investigar a presença da voz feminina nos filmes de Assia Djebar é preciso compreender que a presença da oralidade na constituição da narrativa de filmes realizados em países africanos – tanto na África do norte, quanto em países situados ao sul do continente – é algo estreitamente relacionado à importância que a tradição oral tem nesse contexto, não somente servindo de fonte de inspiração para a construção de histórias, mas, sobretudo, no processo de pensar a “gramática” ou a poética narrativa dos filmes.

Quando surgiram os primeiros cineastas do continente africano, a referência às tradições orais era uma constante. A começar pelo cineasta senegalês Ousmane Sembène que chegou a afirmar: “O cineasta é como um griot7 que é similar a um menestrel da Europa medieval: um homem de conhecimento e senso comum que é o historiador, o contador, a memória viva e a consciência do seu povo” (Pfaff, 1993, p. 13). Assim como Sembène usou o termo griot, Nacer Khemir, cineasta natural da Tunísia, um país a norte do continente, disse se considerar, ele mesmo, um hakawati8, não apenas por ser um contador de histórias, mas o contador de toda uma cultura que adiciona outras histórias às Mil e uma noites para falar sobre o passado, o presente e o futuro (Armes, 2010, p. 69).

A aproximação do cinema com as tradições orais também é resultante da própria percepção que os cineastas têm sobre o princípio do que seja narrativa. Por exemplo, o cineasta senegalês Djibril Mambéty, indicou a relação do cinema com a oralidade ao afirmar em uma entrevista que “o que é dito é mais forte do que o que está escrito; a palavra se dirige à imaginação, não ao ouvido […]. A tradição oral não significa apenas abrir a boca. Significa evocar, criar e escrever” (Mambéty, 1998, p. 151, tradução nossa). Com isso, ele insinuava que a aproximação dos cinemas africanos com as tradições orais vai além de uma associação metafórica da figura de cineasta com a figura de alguém que “conta histórias”, mas se refere ao potencial da palavra dita, falada, evocar imagens. Logo a narrativa – seja oral, seja cinematográfica – deveria ser vista, para além dos seus agentes (enunciadores), como um processo de transmissão de histórias capaz de evocar imagens e, por meio destas, se dirigir à imaginação de seus interlocutores/espectadores.

Por isso, tratar de oralidade nos cinemas africanos não é uma referência direta ao recurso da narração ou intervenção de um agente que usa do verbo (da palavra) para apresentar uma história, mas é uma expressão que se relaciona também com aquilo que Mambéty chama de “evocar imagens”. Mais do que a mediação de histórias pela palavra falada, a oralidade se refere à composição de imagens por meio da linguagem. Imagens que, organizadas em narrativas, têm a capacidade de acionar diferentes camadas de sentido, por vezes misturando eventos factuais com eventos inventados.

No caso de Assia Djebar, a valorização das tradições orais nos filmes por meio da referência a contos, lendas, canções, poemas e relatos históricos, é uma forma de encontrar a expressão autêntica da cultura argelina (Mortimer, 1997). Como afirma a própria cineasta em entrevista a Maryse Léon (2021, tradução nossa):

No caso da Argélia, os contos contados pela avó ou pelo avô9 são muito importantes porque fornecem os recursos culturais para a memória da criança. Posteriormente, a criança recebe o conhecimento escolar vindo de fora, como uma ciência. Antes de 1962, o único produto cultural dos pobres da Argélia era a voz das mulheres. É verdade que esta voz não protestava, mas continha uma mensagem que se perdia.

Nesse sentido, mais do que fonte de informações históricas, as tradições orais também se tornaram fonte de inspiração para a constituição de narrativas cinematográficas, sobretudo entre cineastas de países do continente africano. Com isso, buscamos observar como essa apropriação oferece novas percepções acerca dos estudos da oralidade no cinema, pensando como a presença da voz, sobretudo da voz feminina, contribui para configurar um discurso através dessas narrativas.

Ao usar discurso a partir do cinema, nos referimos à concepção apresentada por Guillaume Soulez (2011) que em sua proposta de análise retórica para o cinema, argumenta que não é apenas a exposição da história que incita debates sobre um filme, mas os dispositivos formais que ele utiliza para contá-la. Ao contrário da ideia de discurso associado à manipulação, uma análise retórica permite restituir, não somente a capacidade mimética das imagens e sons, mas, sobretudo, a sua capacidade deliberativa com o espectador. Em nossa análise fílmica não chegamos a empreender os procedimentos da análise retórica, mas compartilhamos da noção do filme como um discurso, conforme apresentado por Soulez, e consideramos a voz, em seu aspecto semântico e sonoro, um dispositivo formal relevante para se contar uma história no cinema e que será aqui analisada de acordo com as categorias de Jean Châteauvert (1996).

Afinal, tanto o “conto”, quanto o “canto”, são formas de disseminação da memória pela via das tradições orais que, uma vez inseridas na composição da narrativa fílmica, configuram uma estratégia de engajamento do espectador e, nos filmes aqui considerados como objeto de análise, a possibilidade de ressignificar a representação da mulher no contexto do cinema revolucionário da Argélia. Trata-se, portanto, de verificar como aspectos herdados das tradições orais moldam a forma como o filme “fala” ou se dirige para o espectador.

4. “La Nouba” ou da memória em contos

O filme La Nouba des femmes du Mont Chenoua10 (1975-1977) traz a história da arquiteta Lila (Sawsan Noweir), uma mulher que retorna para sua cidade natal (Monte Chenoua), depois de 15 anos do final dos conflitos de independência na Argélia, em busca de suas próprias memórias. Memórias da infância da personagem, mas que se confundem com a própria memória coletiva do país na medida em que as mulheres que testemunham sobre eventos do passado, são pessoas reais. Logo, mais do que um retorno à terra natal da personagem ficcional, trata-se de um retorno ao território onde viveu e morreu Yamina Oudaï, mais conhecida como Zoulikha, heroína esquecida na história da revolução argelina e cujo corpo foi dado como desaparecido.

Entre elementos de ficção e do documentário, é com a voz dessas mulheres camponesas do Monte Chenoua que as memórias de uma Argélia profunda ganham relevo por meio de contos e cantos. A própria palavra “Nouba”, que dá título ao filme, é uma alusão a essa dupla inspiração nas tradições orais. Primeiramente, porque é um termo que pode se referir à “conversa entre mulheres” ou “falar na sua vez”; e também porque o mesmo termo pode ser utilizado em alusão à sinfonia árabe-andaluza, uma estrutura musical dividida em sete movimentos que o filme reproduz em sua narrativa apresentando a história em sete partes: Toushia (Abertura); Istikhbar (Prelúdio); Meseder (Adágio); Brait (Allegro); Derj (Lento); Nesraf (Moderato) e Khlass (Finale) (Mortimer, 1997; Martin, 2011).

A Nouba não se restringe ao norte da África e pode ser encontrada ao longo da costa do Mediterrâneo, também na Síria e no Iraque. Geralmente é tocada por uma banda ou orquestra de sete músicos e composta por diversas peças que refletem sete ritmos diferentes e se caracteriza por ser uma “suíte musical democrática”, que parece não dar precedência a nenhum momento particu­lar da performance, mas dá voz a cada peça vagamente conectada “por sua vez”, assim como no filme cada mulher tem “a sua vez” para se expressar (Martin, 2011, p. 51). Logo, se trata de uma história contada coletivamente pelo revezamento entre as pessoas participantes.

Djebar afirma que, em termos sonoros, embora a nouba seja uma expressão musical mais ligada à cidade, o filme contempla peças musicais de toda a zona rural da Argélia, isso porque a cineasta tinha o desejo de alternar entre os diferentes estilos musicais e juntá-los em uma banda sonora que ilustrasse a realidade diversa do som na Argélia, tanto no tempo (passado) como no espaço. A parte musical do filme também reflete a homenagem ao compositor húngaro Béla Bartok (1881-1945) que, em 1913, após a permanência de um mês na Argélia, soube valorizar a música popular daquela região.

Na história, a arquiteta Lila tem um papel central. Mãe da menina Aïcha e casada com Ali, um veterinário que se tornou cadeirante após a queda de um cavalo, Lila retorna para o Monte Chenoua – sua terra natal e também da própria cineasta – após 15 anos do período da luta de libertação, encerrado em 1962. Assombrada com as lembranças do conflito que levou a vida de muitos de seus familiares, ela luta contra os próprios traumas e busca encontrar a si mesma escutando as histórias das camponesas que moram na região. Enquanto seu marido aparece imobilizado em função do acidente, é ela quem aparece dirigindo um automóvel, condição que das personagens que também sugere uma inversão dos papéis atribuídos ao homem e à mulher, em um país que, mesmo após a independência, ainda era regido pelo patriarcado. Um dilema que o filme tenta construir imageticamente pelos trânsitos das personagens entre as partes internas da casa (escuras, fechadas, gradeadas) em contraposição com o campo aberto onde estão as mulheres camponesas de quem Lila toma depoimento (Figs. 1 e 2).

Figuras 1 e 2: Lila no ambiente escuro de casa em contraste com a luz exterior
Fonte: Filme La Nouba des femmes du Mont Chenoua (RTF, 1975/1978)

Na narrativa, História e memória se encontram pela valorização da voz da mulher e da música tradicional árabe-andaluza, que organiza a estrutura do filme. No entanto, um aspecto que vale destacar é que entre o depoimento das mulheres camponesas são contadas histórias, a exemplo da do Santo do Monte Chenoua (Santo Abdel Rahman). Um santo que tinha sete noivas e a sétima, uma estrangeira, vai até o local onde o santo armazenava manteiga e mel em jarros para beneficiar os seus seguidores. Por curiosidade, a noiva resolve remover a tampa dos jarros e, de forma inesperada, saem deles pombas brancas. Após a sua passagem pelo local, os jarros ficam vazios e a história se encerra com o santo dizendo para a sua comunidade: “Aquela mulher roubou de vocês minhas bençãos”. Uma lenda despretensiosa, mas que coloca uma personagem feminina como protagonista e, ao ser encenada como parte do filme, demonstra a relevância desse conto para as mulheres daquela região.

Outro conto é a história de Malek El Berkani que Lila evoca com as seguintes palavras: “Como uma garotinha, na cama, eu ouvia a vovó, toda noite, me contar, do seu jeito especial, a história da nossa tribo. Grande vovó Allala testemunhou a revolta de Beni Manacer, o ano das sete cavalgadas”. No filme, à semelhança do conto da sétima noiva do Santo, a história de Malek também é encenada enquanto é contada. Uma história que faz referência a um evento verídico que ficou conhecido como a “resistência de Beni Menacer”11 e que foi um dos primeiros elos da resistência popular argelina contra os franceses na região de Miliana e Cherchell, onde se passa o filme. Essas histórias, compartilhadas oralmente pelas camponesas, de uma geração a outra, ao se tornarem objeto de encenação no cinema, deixam de ser apenas parte da memória de suas contadoras, fortalecendo as bases de uma memória coletiva.

Para Assia Djebar, as histórias contadas por essas mulheres são meios de transmissão oral de conhecimento que vem do passado e as mulheres, como guardiãs desse conhecimento, ocupam um lugar de importância na memória em que as avós contam para seus netos as histórias do passado. Como se nota nas referências que Lila faz à “vovó Allala” e em momentos como o da narração, mais ao final do filme: “E assim foi, na silenciosa Argélia. Mulheres idosas sussurrando pela noite e suas histórias se tornaram maravilhas nos sonhos das crianças. E a História é revisitada pelo fogo, em palavras fragmentadas, e por vozes em busca de outras”.

Para Martin Florence (2011), o ponto de partida do filme é a ruptura do silêncio das mujahidat12. Até aquele momento vários filmes haviam representado a participação ativa das mulheres na revolução argelina: Djamila l’Algérienne (1958), do diretor egípcio Youssef Chahine e o ítalo-argelino La battaglia di Algeri (Gillo Pontecorvo, 1966), inspirado no relato do argelino Yacef Saadi, e La Bombe (1969), do diretor argelino Rabah Laradji. Logo, não se trata de um silêncio que sinaliza passividade, mas de um silêncio que, em função de várias forças sociais, políticas e econômicas, acabou se tornou parte da própria representação da mulher nesse contexto:

Se esse filme rompe o silêncio que rodeia a revolução argelina das mulheres 15 anos após o fato, enquanto o governo liderado pela vitoriosa FLN (Frente de Libertação Nacional) está ocupado cantando as façanhas de seus heróis masculinos, ele não monumentaliza as mulheres como sujeitos heroicos. […] Ao invés disto, constrói uma narrativa com uma sucessão de vários ecos da narrativa central do papel das mulheres na luta de libertação. (Martin, 2011, p. 45)

Por isso a voz das mulheres adquire uma relevância ainda maior no filme. É assim que ao longo da narrativa do filme se ouve a voz de diferentes mulheres do Monte Chenoua, que contam suas histórias para Lila, essa personagem que serve como ponto de escuta e mediação, na medida em que apresenta e comenta os depoimentos. A voz de Lila acaba tendo um papel preponderante na narrativa, embora complexo. Isso porque, para Florence Martin (2011, p. 55), embora a voz da personagem seja identificada, em função de sua natureza acusmática, são raras as ocasiões em que o aspecto visual coincide com a voz, se tornando ora uma narração dos eventos, ora um monólogo interior de Lila. Um fenômeno considerado pela autora como “narrativa transvergente”, pois Lila, ao incorporar outras narrativas, faz da sua própria narrativa uma criação simultaneamente individual e plural, histórica e emocional, “atravessa vários gêneros de contar histórias sem aderir às suas restrições individuais por muito tempo”.

5. “La Zerda” ou da memória em canto

O segundo filme, La Zerda ou les chants de l’oubli, foi lançado em 1982 com roteiro assinado em parceria com o poeta e escritor argelino Malek Alloula. Em um documentário basicamente constituído por imagens de arquivo, são as poesias cantadas por vozes anônimas que servem de contraponto aos registros coloniais (1912-1942) do Magrebe suscitando questionamentos sobre o significado das imagens apresentadas. Com um título que faz referência a uma festa rural, geralmente feita em homenagem a um santo local e seguida de refeição (Zerda), o filme apresenta imagens que destacam a memória de tais celebrações. A inserção de vozes femininas, em árabe, no entanto, leva a questionar a natureza dessas imagens e a perceber que, para além da aparência festiva das danças e performances musicais, tais registros eram resultantes de um olhar voyeurístico colonial. Diante disso, perguntamos: se “a memória é o corpo de uma mulher com véu”, como anuncia o letreiro do filme, seria por meio da voz possível desvelar esse corpo de imagens?

Em termos de estrutura narrativa, de acordo com Stefanie Van DePeer (2011), La Zerda segue algumas convenções clássicas do documentário: o uso de imagens de arquivo e a voz extra-quadro. É uma montagem com imagens de celebrações do Magrebe, realizadas no período colonial, e que revelam o olhar sobre o Outro. Imagens que, ao serem associadas com narrações e poemas cantados, são revestidas de outros sentidos. A narrativa de La Zerda é formada por cinco poesias, cada uma incorporando uma “canção do esquecimento”, e apresentadas conforme os seguintes títulos: 1) A memória é um corpo de mulher com véu; 2) Canção da insubmissão (e da guerra de guerrilhas); 3) Canção da insolação (e de sécu­los sepultados na areia) e 4) Canção da emigração (e aqueles que partem como escravos do povo do norte).

Na abertura do filme, uma cartela com texto escrito em francês, narrado por uma voz feminina, em árabe, oferece informações do contexto histórico dos arquivos ao tempo em que prenuncia o tratamento que será dado a eles:

1912-1942, trinta anos no Magrebe. Em um Magrebe totalmente subjugado e reduzido ao silêncio, fotógrafos e cineastas vieram nos colocar em imagens. La Zerda é essa “festa” moribunda que eles pretendiam nos tirar. Apesar das suas imagens, fora do alcance do seu olhar que fuzila, tentamos levantar outras imagens, fragmentos de um cotidiano desprezado… Acima de tudo, por trás do véu desta realidade exposta, despertaram vozes anônimas, coletadas ou re-imaginadas, alma de um Magrebe unificado e do nosso passado13.

Desde a cartela inicial, o texto indica as contradições e a violência associada aos registros feitos no Magrebe colonial. Expressões como “vieram nos colocar em imagens” e festa que “pretendiam nos tirar” não deixam dúvidas do gesto de usurpação contido na produção dessas imagens. Imagens que a despeito de sua importância histórica – fotografias do acervo do Musée de l’Homme e imagens de arquivo extraídas da propaganda colonial francesa dos cinejornais Pathé-Gaumont – possuem a contraparte de terem sido produzidas pelos colonizadores configurando uma memória dúbia entre a nostalgia pelo passado e o trauma da opressão. É diante desses registros de rostos e corpos silenciosos, ora cobertos com véu, ora com olhares que miram os sujeitos do registro, que Assia Djebar, convoca as “vozes anônimas” para, por meio da poesia e da música, fazer ver o que as imagens, por si próprias, não são capazes de mostrar.

Com uma composição assinada pelo marroquino Ahmed Essyad, a performance da voz no filme se manifesta pela interpretação do texto de poemas, falados e cantados, em francês e em árabe, mas também por meio de sons ininteligíveis como gritos e sussurros. Na interpretação desse canto está a voz da própria Assia Djebar, mas também de outras intérpretes como Yumi Nara14, soprano japonesa reconhecida na França e que traz em seu repertório, a presença de músicas de vanguarda como Pierrot Lunaire, Op. 21 (1912), de Arnold Schoengerb (1874-1951). Uma referência musical que nos ajuda a entender a estética de sua performance vocal no filme e a própria sonoridade de algumas canções presentes em La Zerda.

Pierrot Lunaire é uma peça musical de uma composição dodecafonista formada por um ciclo de canções atonais baseadas em uma seleção de poemas de Albert Giraud. Uma peça que, à semelhança das canções do filme, traz uma íntima relação entre poesia e música, e – mesmo sendo de outro período (1912) – é uma produção que surge como parte de um processo de ruptura com determinadas convenções do universo musical (canções tonais), como atesta o músico e pesquisador Lucas Robatto (2006, p. 130) ao tratar sobre a peça: “A renúncia intencional ao sistema tonal é parte de uma atitude estética original, que – negando a tradição então vigente – direciona-se para a criação de uma nova concepção de música”. Além disso, “a adoção do melodrama – gênero de música vocal ‘semi’- cantada, que teve certa aceitação durante o sécu­lo xviii e estava sendo revivido ao final do sécu­lo xix” (Robatto, 2001, p. 130) também era uma forma de se contrapor à voz operística para o canto, seguindo a notação rítmica, mas se aproximando de um “canto falado”. Esse “canto falado” se faz notar em diversos momentos do filme, dos quais destacamos uma sequência extraída da “canção da insubmissão” em que, diante de uma sucessão de fotos coloridas de mulheres, aparece a imagem de uma jovem que sorri para a câmera, com as duas mãos sobre o ventre, contrastando com o acompanhamento sonoro de uma voz feminina em grito crescente (Figs. 3 e 4).

Figuras 3 e 4: O grito escondido em um sorriso
Fonte: Filme La Zerda ou les chants de l’oubli (RTF, 1978/1982)

No filme também há a presença de sons e ritmos que remetem a instrumentos da música árabe, em especial a música dos tuaregues, agrupamento nômade que transita pelas regiões desérticas do Saara e que aparece em diversos registros cavalgando, disparando com suas armas em momentos de celebração ou ainda tocando instrumentos musicais. A esse respeito, merece destaque a fotografia de uma mulher tuaregue com seu imzad (violino de uma única corda), trazendo à memória a existência de mulheres tocadoras de instrumentos e o fato de esse ser um instrumento musical que, diferente de outros, era (e ainda é) tradicionalmente tocado apenas por mulheres (Fig. 5).

Figuras 5: A tuaregue e seu imzad
Fonte: Filme La Zerda ou les chants de l’oubli (RTF, 1978/1982)

6. Vozes da memória para a história

Será por acaso que a maior parte das obras cinematográficas dirigidas por mulheres trazem ao som, à música, ao timbre das vozes captadas e surpreendidas, um relevo tão grande quanto a própria imagem? Como se fosse necessário aproximar-se lentamente da tela, povoá-la, se necessário, começando com um olhar, mesmo míope e vago, mas carregado por uma voz plena e presente, dura como pedra, frágil e rica como o coração humano. (Djebar, 1989, p. 37, tradução e grifos nossos)

Assia Djebar tinha consciência de que o uso da oralidade no cinema ia além das palavras transmitidas pela voz, mas carregavam um “timbre”. Jean Châteauvert no livro Des mot à l’image: la voix over au cinéma (1996, pp. 111-112) propõe uma análise da narração no cinema e discute a voz como material sonoro. Ela defende que assim que uma voz é ouvida, antes mesmo de ouvirmos o discurso (conteúdo), ela nos dá uma grande quantidade de informações que podem ser agrupadas em seis categorias: volume, ritmo, espacialização, duração, granulação e timbre. No Volume, a voz pode ser emitida em diferentes intensidades, pode ser gritada, sussurrada; no Ritmo, a voz pode ser lenta ou rápida, sendo uma característica importante pela emotividade que provoca – no contexto ocidental, por exemplo, o ritmo lento da voz é associado à tristeza e o rápido como dinâmico e alegre; a Espacialização é aquilo que permite distinguir o espaço ou ambiente em que a voz está situada, com variações entre som direto e reverberado; a Duração indica a presença da voz no discurso do filme; a Granulação indica a textura da voz nos permitindo inferir informações sobre quem fala (sexo, idade, identidade, etc) e, por fim, o Timbre é a cor particu­lar da voz (profunda ou nasal, de peito ou de cabeça) e nos acrescenta conotações sobre o locutor e sua fala. Todas essas variáveis podem ser observadas na utilização da voz, mas de acordo com a autora são a Granulação e o Timbre que, associados ao contexto de ocorrência (material fílmico), influenciam sobre a nossa percepção acerca de quem fala (seja essa voz de uma fonte visível ou de uma voz acusmática).

Em entrevista a Maryse Léon (1982/2021), Djebar insinua seu interesse por esses aspectos da voz ao afirmar que, quando tentou transpor o árabe popular para o francês (na escrita de seus romances), percebeu uma perda e o próprio timbre das vozes. Assim, o cinema lhe permitiu não somente trabalhar com a língua materna, mas se aproximar das canções e da voz das mulheres (Djebar, 1995). Ao fazer o uso de canções sem letra no som do filme La Zerda – como nos momentos de gritos e sussurros que comentam as imagens – Djebar deixa evidente aspectos da materialidade sonora da voz (granulação e timbre), se aproximando daquilo que Châteauvert denomina de “voz marcada” (1996, p. 118). Uma voz que é um dos traços estéticos que mais perturba a nossa visão do filme, pois rompe com o “corpo” (visível ou não) que lhe está associado. Um exemplo é a narração no documentário Las Hurdes (Luís Buñuel, 1932) em que o tom neutro da voz contrasta com os eventos trágicos apresentados durante o filme. Já em La Zerda, a materialidade da voz nos conduz a um efeito contrário: o tom estridente, os gritos e sussurros, por vezes contrastam com o aspecto apaziguado que as imagens podem oferecer. Isso modula a nossa compreensão e nos traz à memória que, apesar do aspecto pacífico, são registros produzidos em um contexto de subjugação e violência como a voz afirma, diversas vezes, ao longo do documentário: “Vivemos. Sobrevivemos. Nos fotografaram famintos e com os pés descalços como recordação para o senhorio”.

A performance da voz nos filmes de Assia Djebar pode ser vista como parte de um processo mais amplo de reivindicação por representar uma memória coletiva (esquecida) e que precisa ser vista como uma questão política. Ao considerar a existência de vários centros e margens no curso da História, conclui que algo, convenientemente, foi deixado de fora. Logo, é preciso reivindicar o retorno dessa memória, sobretudo em um cenário de aparente reconhecimento – como é o caso da representação das mulheres nos relatos sobre a revolução argelina. Os corpos estão registrados, mas são silenciosos. A memória tem um corpo, ela existe, mas é um “corpo de mulher com véu”, ou seja, está escondida.

Ao discutir a noção de memória e sua relação com a História, Pierre Nora (1993, p. 12) afirma que não existe uma memória espontânea, logo, é preciso materializá-la, criar “lugares de memória”, mecanismos para a sua perpetuação. Enquanto a História é vista como uma reconstrução sempre problemática e incompleta, a memória se apresenta como essa instância carregada por grupos vivos e, por isso, sempre exposta à constante dialética entre lembrança e esquecimento. A narrativa cinematográfica, portanto, se tornou um “lugar de memória”, sobretudo, em contextos como os da Argélia que, em função do regime colonial, pessoas estiveram expostas ao olhar exotizante do Outro, restando agora o desafio de dar “voz” a essas imagens e construir outras possibilidades de interpretação sobre o passado.

Por essa relação com a memória é que Robert Rosenstone no livro Revisioning history: films and the construction of a new past (1995), parte da premissa de que meios audiovisuais, ao trazer sentido a traços do passado, podem ser considerados “uma possível forma de História, que é densamente visual e verbal, que não privilegia nem a palavra, nem a imagem, mas de alguma forma coloca uma contra a outra como forma de alcançar novos tipos de entendimento” (Rosenstone, 1995, p. 165).

7. Considerações finais

Mais do que uma análise textual das narrativas cinematográficas que se constituem dentro desse espectro – inspiradas em tradições orais – essa comunicação é parte de um esforço em investir em análises fílmicas atentas à utilização da voz no cinema, não somente no seu aspecto semântico, enquanto transmissora de histórias e contos, mas também no seu aspecto sonoro associada a canções e outras modalidades de performance e como isso, em interação com a narrativa fílmica, permite a construção de novas camadas de sentido.

Seja de uma forma ou de outra, contos e cantos se encarregam de trazer elementos da memória coletiva para o interior do filme como estratégias de dar visibilidade à presença das mulheres na narrativa daqueles acontecimentos históricos e, com isso, utilizar o cinema como uma forma de oferecer uma revisão da própria história da atuação das mulheres nas lutas de libertação da Argélia. Uma busca que, nos termos de Edward Said (2011, p. 34) se justifica não por uma discordância quanto ao que ocorreu no passado, mas pela “incerteza se o passado é de fato passado, morto e enterrado, ou se persiste, mesmo que talvez sob outras formas”.

É através da análise dessa produção pioneira no contexto dos cinemas africanos, especialmente da Argélia, que o artigo buscou examinar a presença das tradições orais em narrativas cinematográficas, considerando a oralidade – o uso da voz com produção de sentido – como fenômeno que precisa ser aprofundado nos estudos teóricos de cinema, não somente enquanto estratégia poética, de composição da narrativa, mas, sobretudo, enquanto uma estratégia retórica na medida em que interfere sobre o modo como o filme constrói o seu discurso.

Assim, foi possível perceber na produção cinematográfica de Assia Djebar que as tradições orais são utilizadas inicialmente por meio da história oral (contos) das mulheres do Monte Chenoua, em que a voz individual da personagem, por vezes, se confunde essa voz coletiva mulheres, não em termos sonoros ou de enunciação, mas quanto à forma como se relacionam com memórias do passado. Já na produção seguinte, a voz adquire uma evidência ainda maior, tanto pelo fato de o documentário ser uma obra baseada em poesias e canções (em que a palavra acaba sendo um elemento preponderante), mas também pela forma como tais canções são interpretadas (em uma integração de tendências de vanguarda da música clássica, como o “canto falado” com elementos da música árabe dos tuaregues, como os gritos cantados das mulheres). Seja pelo conto, seja pelo canto, a presença da voz é o atalho para acessar essas histórias de uma Argélia profunda e lembrar que se “a memória é voz de uma mulher oprimida”, ela também pode vir a ser o “ventre de uma mulher que dá a luz”.

Referências bibliográficas

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1 Noção que advém de análise retórica (Soulez, 2011), proposta analítica a ser abordada mais adiante.

2 Tais aspectos já foram abordados em outras pesquisas (Lima, 2020 p. 97-98), entre elas, o artigo Perspectives on orality in African Cinema (Tomaselli y Eke, 1995).

3 Embora seja a mais conhecida, é preciso lembrar que já na década de 1970, a artista e cantora argelina Djouhra Abouda já havia realizado dois curtas experimentais Algérie couleurs (1970-1972) e Cinécité (1973-1974) e um longa documental, Ali au pays de merveilles (1975-76), em parceria com Alain Bonnamy, sobre a situação de imigrantes árabes na França.

4 Expressão utilizada em referência ao conjunto de países: Argélia, Marrocos e Tunísia.

5 O nome do jornal advém de uma transliteração para o francês do termo árabe مجاهد mujahid (santo combatente).

6 De todos os romances, destacamos sobretudo aqueles que foram escritos após a realização do primeiro filme e que, segundo a própria cineasta, transformou a sua forma de escrever: Femmes d’Alger dans leur appartement (1980); L’Amour, la fantasia (1985); Ombre sultane (1987); Loin de Médine (1991); Vaste est la prison (1995); Le Blanc de l’Algérie (1996); Ces voix qui m’assiègent: en marge de ma francophonie (1999); La Femme sans sépulture (2002); La Disparition de la langue française (2003) e Nulle part dans la maison de mon père (2007).

7 Palavra de origem franco-africana usada em referência aos antigos contadores de história de regiões da África Ocidental. Não se trata de uma denominação universal, podendo receber diferentes nomes conforme a cultura em que se desenvolve. Mais informações cf. Lima, 2020, p. 102-103

8 No mundo árabe significa literalmente “contador”. Fonte: https://www.dimasharif.com/al-hakawati-the-storyteller/

9 Djibril Diop Mambéty também faz referência à figura da avó como fonte de inspiração em entrevista apresentada no curta La grammaire de Grand-mère (1996), dirigido por Jean-Pierre Bekolo.

10 Em tradução livre do francês: “A Nouba das mulheres do Monte Chenoua”.

12 Expressão utilizada em referência às mulheres participantes das lutas de libertação.

13 Do original em francês: Dans un Maghreb totalement soumis et réduit au silence, photographes et cineastes ont afflué pour nous prende en images … La « Zerda » est cette « fête » moribonde qu’ils prétendent saisir de nous. Malgré leurs images, à partir du hors-champ de leur regard qui fusille, nous avons tenté de faire lever d’autres images, lambeaux d’un quotidien méprisé … Derrière le voile de cette réalité exposée, se sont réveillées des voix anonymes, recueillies ou re-imaginées, l’âme d’un Maghreb unifié et de notre passé.