Revista Comunicación, Vol. 21, N.º 2, año 2023, pp. 14-31

DOI: https://doi.org/10.12795/Comunicacion.2023.v21.i02.01//

ARTÍCu­lo

Afrobubblegum, resistência e esperança queer em rafiki (2018), de Wanuri Kahiu

Afrobubblegum, resistencia queer y esperanza en rafiki (2018), de Wanuri Kahiu

Lucas Ravazzano

Faculdade de Tecnologia e Ciências Salvador, Bahia, Brazil

ravazzanolucas@gmail.com

https://orcid.org/0000-0003-0985-0514

Recibido: 14 de octubre de 2023

Solicitud de modificaciones: 2 de noviembre de 2023

Aceptado: 16 de noviembre de 2023

Resumo

No presente artigo, propomo-nos a analisar as contribuições de Wanuri Kahiu para o cinema queer africano. Abordaremos como em Rafiki (2018), apenas seu segundo longa-metragem como realizadora, Kahiu apresenta e desenvolve esteticamente as premissas de uma arte Afrobubblegum por ela proposta, de modo a retratar, num contexto de esperança e novas possibilidades, a experiência de ser queer numa África heterossexista. Para tanto, a pesquisa irá recorrer a trabalhos como os de Diawara (2007, 2010) e Adichie (2009) de modo a demonstrar como a proposta estética da diretora visa contrapor visões predominantemente pessimistas que o cinema projeta a respeito de países africanos. Adicionalmente, exploraremos a história de luta e resistência da diretora queniana para ver seu filme chegar às telas de seu país de nascimento e a importância que a exibição desta obra, nos cinemas do Quênia, teve como momento de celebração da existência de pessoas queer no continente africano. Essas discussões serão conduzidas a partir de contribuições como as de Louro (2008) e Green-Simms (2022) a respeito da importância do cinema queer criar histórias que mostrem a resistência e esperança diante de realidades opressivas.

Palabras clave: Wanuri Kahiu, cinema do Quênia, cinema queer, Rafiki, Afrobubblegum.

Abstract

In this article, we propose to analyze Wanuri Kahiu’s contributions to African queer cinema. We will discuss how in Rafiki (2018), only her second feature film as director, Kahiu presents and aesthetically develops the premises of an Afrobubblegum art proposed by her, in order to portray, in a context of hope and new possibilities, the experience of being queer in a heterosexist Africa. To this end, the research will resort to works such as those by Diawara (2007, 2010) and Adichie (2009) in order to demonstrate how the director’s aesthetic proposal aims to counter predominantly pessimistic views that cinema projects regarding African countries. Additionally, we will explore the Kenyan director’s story of struggle and resistance to see her film reach the screens in her country of birth and the importance that the screening of this work in Kenyan cinemas had as a moment of celebration of the existence of queer people in Africa. These discussions will be conducted based on contributions such as those from Louro (2008) and Green-Simms (2022) regarding the importance of queer cinema creating stories that show resistance and hope in the face of oppressive realities.

Keywords: Wanuri Kahiu, Kenyan cinema, queer cinema, Rafiki, Afrobubblegum.

1. Introdução

Ainda que vivamos em pleno sécu­lo xxi e que muitos direitos tenham sido conquistados pela comunidade LGBTQIAP+ ao redor do mundo, a experiência de ser queer ainda é marcada por sentimentos de inadequação e abjeção e pela vivência de situações das mais diversas violências (social, familiar, cultural, religiosa, policial, política…), especialmente em países em que a homossexualidade é criminalizada1. No caso específico do Quênia, a criminalização da homossexualidade data da era colonial e está prevista nos artigos 162 e 165 do Código Penal, que punem relações homossexuais com até quatorze anos de prisão. Em 2019, em julgamento a um recurso interposto em 2016 por entidades de defesa de direitos LGBTQIAP+, o Supremo Tribunal de Nairóbi rejeitou a tese de inconstitucionalidade dos referidos artigos, negando a possibilidade de descriminalização da “conjunção carnal ‘antinatural’” (art. 162) e das “práticas indecentes entre homens” (art. 165) sob a alegação de que tal decisão abriria o caminho para a união entre pessoas do mesmo sexo2. Neste contexto, o filme Rafiki (2018), realizado pela diretora queniana Wanuri Kahiu no período em que as discussões jurídicas em questão estavam bastante acirradas no país, primeiro filme queniano3 a ser selecionado para ser exibido no prestigiado Festival de Cannes, ganha uma particu­lar importância para o cinema queer mundial e, particu­larmente, para o cinema queer feito em África.

Nascida em Nairobi, capital do Quênia, filha de pais considerados conservadores, Wanuri Kahiu, ao escolher abraçar profissionalmente as artes, rompeu com o histórico familiar de enveredar por profissões tidas como mais tradicionais – sua mãe é médica pediatra, e seu pai, empresário. Após inicialmente graduar-se, em 2001, em Administração (Management Science) pela Universidade de Warwick, em Londres, Kahiu foi para os Estados Unidos, onde realizou seus estudos de realização audiovisual, em nível de mestrado, na Universidade da Califórnia, em Los Angeles. Tendo trabalhado com diretores renomados, como F. Gary Gray e Phillip Noyce, e com eles aperfeiçoado seu ofício, Kahiu retorna para o Quênia, onde dirige seu primeiro longa-metragem, From a whisper (2008), com o qual vence o prêmio de melhor filme no Pan African Film Festival, em Los Angeles, além de outros cinco, incluindo melhor diretora e melhor roteiro (de sua autoria), no African Movie Academy Award. Na sequência, ela dirige o curta-metragem Pumzi (2009), que teve sua estreia no Festival de Sundance e rendeu mais prêmios para a diretora queniana em Cannes, Cartago e Veneza. Rafiki é o segundo longa-metragem dirigido por Kahiu4.

Adaptado do conto Jambula Tree, da autora ugandesa Monica Arac de Nyeko, Rafiki narra a história do encontro entre Kena (Samantha Mugatsia) e Ziki (Sheila Munyiva), moradoras do mesmo bairro em Nairobi e filhas de políticos rivais de uma comunidade conservadora e bastante religiosa. Da aproximação entre as duas garotas, apesar de tudo que as distancia, começa a surgir uma relação amorosa, que é explorada neste primeiro filme queniano a retratar um romance entre duas mulheres. A fim de construir visualmente seu longa-metragem, Kahiu imerge totalmente na estética que ela criou e denomina “arte Afrobubblegum, uma arte ‘divertida, feroz e frívola’ que se contrapõe às imagens de pobreza, doença e destituição que são tão frequentemente associadas à África” (Green-Simms, 2022, p. 191, tradução nossa5). Contudo, apesar de todas essas tentativas de contribuição para novas possibilidades de narração de histórias passadas em África e do reconhecimento internacional do trabalho da realizadora e de Rafiki em particu­lar, com sua seleção para ser exibido e concorrer no Festival de Cannes, Kahiu enfrentou muitas dificuldades para ver este seu filme exibido no Quênia. Em razão de a narrativa centrar-se numa relação homossexual, o longa-metragem foi totalmente banido pelo Kenyan Film Classification Board, órgão governamental que define a classificação indicativa dos filmes que podem chegar às telas dos cinemas quenianos, o que levou a diretora a buscar garantir judicialmente a exibição de sua obra.

Neste contexto, portanto, este artigo se divide em duas abordagens teórico-analíticas. De um lado, pretendemos ressaltar a importância do Afrobubblegum, conforme idealizado por Wanuri Kahiu e materializado em Rafiki, como proposta artística e estética de renovação do cinema africano. De outro lado, demonstraremos a importância deste segundo longa-metragem da diretora queniana e de sua luta para vê-lo ser exibido nos cinemas de seu país natal como um exemplo de resistência e esperança por um futuro mais feliz e inclusivo para a comunidade queer, a partir das imagens e histórico deste que é um dos filmes mais marcantes do cinema queer africano contemporâneo. Para tanto, serviremos-nos da análise de imagens extraídas do próprio filme objeto desta investigação, com especial atenção para aquelas cujas escolhas realizadas pela direção de arte e figurino nos fazem visualizar a influência do Afrobubblegum na construção da Nairobi e dos personagens retratados por Kahiu, bem como no desenvolvimento, ao longo de Rafiki, da relação amorosa que surge entre Kena e Ziki. Como metodologia de análise, nosso principal referencial teórico é a Poética do Cinema.

Desenvolvida por Wilson Gomes, a Poética do Cinema conforma-se num referencial teórico-metodológico por ele proposto a partir do estudo da Poética, de Aristóteles, que entendia que toda obra de arte é produzida com uma finalidade específica. Neste interim, Gomes propõe que produtos audiovisuais devam ser analisados a partir do potencial dos efeitos cognitivos (ligados aos sentidos), sensoriais (referentes a sensações provocadas) e afetivos (emocionais, sentimentais) que eles se destinam a causar no espectador (GOMES, 2004a). Para uma melhor análise desta produção de efeitos, portanto, o estudo da obra cinematográfica empreendido pelo operador deva basear-se na compreensão das estratégias adotadas pelo realizador audiovisual na utilização dos recursos fílmicos a seu dispor para a efetiva produção dos efeitos desejados. Para Gomes, tais recursos devem ser analisados em quatro esferas distintas: a visual, consistente na observação da construção da imagem pelo realizador, a partir da análise de enquadramentos de planos, de movimentos de câmera, de contraste, tonalidade e brilho; a sonora, referente aos aspectos da construção do universo acústico da pelícu­la, tanto com base no desenho e edição de som e na captação de sons ambiente, quanto com base nas músicas compostas ou escolhidas para serem executadas em determinados momentos do filme; a cênica, atinente às escolhas da direção de atuação do elenco e dos elementos selecionados para compor as cenas, como locações, cenários, objetos e figurinos; e a narrativa, relacionada à composição da história do filme em si, seu argumento, roteiro e trama (GOMES, 2004b). Neste estudo, na análise de Rafiki, daremos uma especial atenção às esferas cênica e narrativa do filme, por entendermos que são elas que contêm as pistas que nos permitem melhor desenvolver nossa investigação.

2. As possibilidades da arte Afrobubblegum de Wanuri Kahiu

Uma das marcas mais importantes de Wanuri Kahiu como realizadora é sua proposta de uma arte Afrobubblegum como possibilidade estética de retratar a África em suas obras, que ela melhor delineia em um TED Talk apresentado em 2017. Na tentativa de se distanciar de uma imagem normalmente associada ao continente africano de “um lugar sério onde somente coisas sérias acontecem” (Kahiu, 2017, tradução nossa6), devastado pela guerra, pela pobreza, pela AIDS e pelas heranças de seu passado colonial, a diretora queniana se dispõe a apresentar, em seus filmes, uma visão da África que é “apenas divertida, feroz e frívola, tão frívola quanto chiclete” (Kahiu, 2017, tradução nossa7). Surgem daí, então, as primeiras premissas do Afrobubblegum.

Em princípio, de modo a distanciar-se da politização e da seriedade dos temas que via nos retratos da África comumente presentes nos filmes, Kahiu propõe “a advocacia da arte que não é guiada por uma política ou por uma agenda ou baseada na educação” (Kahiu, 2017, tradução nossa8) das pessoas sobre as mazelas do continente, de uma arte como celebração da própria arte, feita de imagens de um povo africano vibrante, amoroso, bem sucedido. Neste contexto, como teste inicial, a fim de que um filme possa aderir à estética Afrobubblegum, Kahiu sugere que seu criador se faça as seguintes três perguntas: Dois ou mais africanos(as) retratados(as) na obra são saudáveis? Esses mesmos dois personagens possuem estabilidade financeira, não precisam de ajuda externa? Esses personagens se divertem e aproveitam a vida que têm? Caso a resposta a duas ou mais dessas perguntas seja positiva, Kahiu entende que se está diante de uma obra de arte Afrobubblegum.

Contudo, apesar de parecer querer afastar-se, com suas propostas e seu teste, de uma arte mais politizada, a própria Kahiu reconhece a força política que existe nas representações que seu Afrobubblegum pode trazer para o cinema africano (Kahiu, 2017). Ao apresentar essas imagens de africanos que são saudáveis, divertem-se, vibram e experimentam momentos de alegria e leveza, a realizadora queniana entende que estará levando para os espectadores de seus filmes outras possibilidades de ser africano, eventualmente possibilitando que eles se enxerguem como pessoas merecedoras de felicidade a partir da humanidade e alegria partilhada através de suas histórias e de seus personagens.

É essa ideia Afrobubblegum de uma África povoada de pessoas, lugares, sons e cores vibrantes e diferentes das concepções estereotípicas do continente que domina Rafiki desde os seus momentos iniciais. No começo dos créditos, Kahiu já nos inunda sensorialmente com sons típicos de um ambiente urbano (motores e buzinas de veícu­los, sirenes, pessoas falando, trânsito de muitos carros), afastando-nos, de logo, de qualquer noção pré-concebida de uma África rural, primitiva, tribal. Mas é a verdadeira primeira imagem do filme (Imagem 1) que nos faz imergir em sua estética Afrobubblegum: a parede de um prédio residencial pintada em dois tons de rosa, vibrante, “cor de chiclete”, em eventual prenúncio da paleta de cores vivas que marcará o filme a que estamos prestes a assistir.

Imagem 1. O prédio cor de chiclete

Desde a exploração de um ambiente urbano, colorido, cheia de vida e de pessoas alegres circu­lando por suas ruas e bares e parques – onde os diversos tons de rosa imperam em paredes, guarda-sóis, cadeiras, roupas e diversos outros objetos de cena –, até a caracterização de seus personagens, perpassando pelas músicas escolhidas para compor a trilha sonora de seu filme, Kahiu imbui Rafiki de marcas audiovisuais que remetem claramente a sua proposta de uma arte Afrobubblegum pautada na representação de uma África de classe média, de cidades bem estruturadas, com o vislumbre de diversos futuros possíveis para seus habitantes. É nesse cenário, então, que ela opta por desenvolver e nos apresentar sua história queer do encontro de duas jovens mulheres que tinham tudo para não se aproximarem: a rivalidade política dos pais, a diferença de classe social, a religiosidade das famílias, o heterossexismo e a homofobia estruturais do Estado e da comunidade em que estão inseridas.

A mise-en-scène coloca em primeiro plano um ambiente de novas possibilidades de modo que, mesmo quando a quase obrigatória violência homofóbica vem e vai, os espectadores percebem que Kahiu traz uma história de esperança. Esteticamente, o filme é deliberadamente filmado para evitar as narrativas pessimistas sobre minorias sexuais em países africanos. Ele está repleto de cores brilhantes e definido por uma trilha sonora Afro-pop vibrante. Ele apresenta africanos de classe média que se preocupam e se decepcionam com o amor sem o melodrama exagerado das produções de Nollywood. O filme também propaga ardentemente uma visão da cidade da África Oriental que funciona: as ruas são limpas, o trânsito flui e seus moradores visitam parques temáticos e remam em um lago para se divertir. Ainda assim, o filme elucida o desencanto social queer que fervilha abaixo do limiar do visível e além das notícias habituais de violência anti-queer. Ou seja, ele imagina formas específicas de subjetividade queer que se desenvolvem sob determinadas circunstâncias. (Osinubi, 2019, p. 72, tradução nossa9).

A proposta estética de Wanuri Kahiu e as falas da diretora sobre querer contrapor as visões disseminadas pelo mundo sobre a África ser um continente marcado pela pobreza com um universo colorido, vibrante e cheio de afeto podem ser entendidas como uma tentativa de construir um relato sobre esse espaço que resista a esse olhar externo que insiste, como diria Stam (2003), em classificações etnocêntricas que descrevem esses povos como atrasados, subdesenvolvidos ou atolados em tradições supostamente estáticas.

Para discutir essas representações da África como um espaço atrasado e estático, a presente pesquisa ira recorrer à noção de afropessimismo. Como afirma Ryan Poll (2018) a genealogia intelectual do termo afropessimismo é uma realização complexa, que inclui nomes como Saidiya Hartman, Frantz Fanon, Lewis Gordon, Ronald Judy, David Marriott, Achille Mbembe, Orlando Patterson, Hortense Spillers, Christina Sharpe, Jared Sexton, Ta-Nehisi Coates e George Yancy. Poll (2020) afirma que o afropessimismo pensa a escravidão negra como a criação de um novo mundo, a criação da modernidade e a criação daquilo que Frantz Fanon (1968) chamaria de uma nova “espécie”. Sharpe (2016) ecoa esse pensamento ao afirmar que a modernidade é definida pela reaparição constante de navios negreiros no cotidiano sob outras formas como prisões ou periferias. Sob essa perspectiva, ser negro seria, fundamental e ontologicamente, ser marcado como escravo, seja o ano 1623, 1723 ou 2023. Como diz Shingavi (2016, 08:05-08:14), o “pessimismo” no nome dessa corrente de pensamento se refere ao que seria uma descrição honesta da aparente impossibilidade de justiça ou igualdade racial no mundo contemporâneo.

A ideia de um olhar sobre a África no qual predomina a visão de um continente atrasado e miserável, no qual todos os habitantes levam vidas sofridas, encontra eco em Manthia Diawara (2007). Ao refletir sobre esse olhar enviesado voltado para o continente africano e sobre sua repercussão nas artes, Diawara considera que muitas produções africanas incorrem naquilo que ele denomina como afropessimismo, que se materializa em obras focadas em temas como disseminação da AIDS na África, desvalorização econômica, alienação das tradições, mutilações genitais ou outras formas de opressão à mulher, e que reverberam no imaginário de espectadores ocidentais e com uma perspectiva ocidentalizada.

Esse olhar afropessimista também seria disseminado por produções do ocidente, especialmente pelo telejornalismo, cuja cobertura da África constantemente foca na pobreza, na violência ou na instabilidade sociopolítica desses países, criando a impressão de que esses locais não dão conta dos próprios problemas. O cinema também reforça esse olhar, através de “filmes afropessimistas de Hollywood, com mulheres e homens brancos como diretores ou personagens principais que vêm ao resgate dos africanos desamparados10” (Diawara, 2010, p. 77, tradução nossa). Assim, a representação da África sob uma perspectiva afropessimista se constrói sob várias instâncias de produção discursiva e serve para reduzir as populações e problemas do continente a estereótipos unidimensionais reduzidos ao seu sofrimento e atraso.

A visão do continente africano como esse espaço de miséria e sofrimento se reflete também como uma demanda no espaço de recepção crítica, quase como se certos setores da espectatorialidade entendessem esse tipo de representação afropessismista como algo autenticamente africano. Na apresentação de seu TED Talk O perigo de uma única história, no qual pondera sobre os riscos de abordagens unilaterais sobre a África e os seus escritores, Chimamanda Adichie (2009) revela uma preocupação com a questão da autenticidade a partir de problemas de recepção baseados em discriminação e visões etnocentristas.

Para essa autora, muitas vezes a busca a respeito do que significaria ser “autenticamente africano” se transforma em uma reprodução de estereótipos a respeito do continente africano. Adichie (2012) inclusive narra uma experiência que teve com um professor que analisou o trabalho dela. Segundo a autora, o professor lhe disse que as personagens que ela escrevia eram parecidas demais com ele, pessoas de classe média, instruídas, que dirigiam carros e não passavam fome, não soando como personagens autenticamente africanas. Adichie aponta como a ideia do que seria a África é construída por essa “única história” contada e recontada diversas vezes, por diferentes pessoas, mas sempre construindo a mesma impressão monolítica sobre o continente e suas populações, resultando em um retrato unidimensional que não dá conta da multiplicidade de experiências, vivências e culturas contidas em um território tão vasto.

Diante disso, a proposta de uma arte Afrobubblegum vinda de Kahiu sugere uma tentativa de buscar caminhos estéticos para apresentar uma visão sobre a vida na África que destoa do afropessimismo mencionado por Diawara (2007), uma proposta voltada a pluralizar a “história única” mencionada por Adichie (2012). Esse movimento estético pode ser entendido como uma maneira de resistir ao modelo estereotipado de representação, apresentando tramas cheias de cor, sentimento e otimismo a despeito dos problemas que permeiam o cotidiano de suas personagens, que nunca são reduzidas ao seu sofrimento ou às dificuldades enfrentadas. A diretora se insere naquilo que Bamba (2009) define como um movimento de jovens cineastas africanos com uma maior preocupação com aquilo que ele chama de “escritura fílmica”, ou seja, uma busca por maior esmero nos roteiros e na mise-en-scène, experimentando com as possibilidades de contar histórias em um meio audiovisual. O autor também vê um movimento de “aproximação sem constrangimento de alguns cineastas africanos com os filmes de gênero” (Bamba, 2009, p.189), algo que Kahiu faz em Rafiki ao estruturar a história de Kena e Ziki como algo que remete a uma comédia romântica.

Neste contexto, de fato, a estética da arte Afrobubblegum de Kahiu permeia o desenvolvimento de todo o relacionamento entre Kena e Ziki. Os encontros entre as duas protagonistas são sempre banhados por cores marcantes, já presentes no primeiro momento em que vemos Ziki no filme, a partir do olhar de Kena, e nos deparamos com as longas tranças rosa do seu cabelo e seu marcante batom roxo/lilás, numa cena emoldurada pelas paredes “cor de chiclete” do edifício ao fundo (Imagem 2).

Imagem 2. As cores de Ziki

O matatu abandonado (espécie de kombi usada para o transporte coletivo de pessoas no Quênia) em que as jovens têm seus principais momentos de intimidade parece estar constantemente banhado por uma luminosidade rósea diáfana, acentuada pela cor das flores que crescem em volta do veícu­lo, visíveis a partir de suas janelas (Imagem 3).

Imagem 3. As luzes e cores do matatu

Além disso, o primeiro real encontro amoroso entre elas, em que finalmente trocam seu primeiro beijo, ocorre rodeado de elementos que buscam reiterar esse mundo de alegria, leveza e diversão possíveis na África: numa cena que começa ao som da balada romântica Ignited, de Mumbi Kasumba (cujos primeiros versos já anunciam “Se existe uma razão para o amor / é você que acende esse coração / Se existe uma estação para o amor / você prova que é agora”11), Kena e Ziki vão juntas a um parque temático, andam de pedalinho em um lago, de mãos dadas, e terminam a noite dançando juntas em uma boate, onde pintam seus rostos com tintas de cor neon e finalmente se beijam (Imagem 4).

Imagem 4. Kena e Ziki com rostos pintados

Apresentar histórias sobre a África com leveza, afeto e vivacidade é algo que Wanuri Kahiu já fazia em seu primeiro longa-metragem, From a Whisper (2008). O filme narra a história de Tamani, uma jovem artista que espalha pinturas de coração ao redor da área atingida pelo bombardeio à embaixada dos Estados Unidos em Nairóbi ocorrido em 1998. As pinturas de Tamani fascinam o oficial de inteligência Abu, e ambos se aproximam por conta das memórias que têm do atentado. Apesar de lidar com o trauma de um evento real, a narrativa nunca reduz seus personagens a pessoas que vivem para sofrer, com Tamani servindo para mostrar como o afeto e a arte podem transformar a dor em algo belo.

Desde From a Whisper, Kahiu já nos apresentava o uso de cores intensas que posteriormente se tornaria mais marcante em Rafiki. Ainda que, nesse primeiro longa, a diretora sirva-se da estética Afrobubblegum de maneira mais comedida, já é possível perceber como ela usa aqui tons de vermelho e rosa na construção de seus espaços para conferir a eles uma atmosfera de afeto e calor humano:

“O contraste do vermelho dos corações pintados por Tamani com a paisagem dominada por concreto cinzento do memorial transforma em belo um espaço frio, conferindo a ele outros significados. A ideia de que a arte, a cor e o afeto são um meio de se elevar diante de traumas e dificuldades é algo que vai acompanhar Kahiu em Rafiki, seu longa posterior, no qual ela trabalha esses elementos de maneira ainda mais pujante.” (Ravazzano, 2022)

É interessante notarmos, em Rafiki, que, para além do uso de cores marcantes, especialmente tons de rosa, nos figurinos das protagonistas e nos ambientes de Nairobi por onde elas circu­lam e vivem sua relação, em mais um aparente exemplo do uso de uma estética Afrobubblegum para construir outros mundos africanos possíveis, Kahiu também delimita o espaço-tempo em que Kena e Ziki vivem seu romance a partir do uso do som. Neste contexto, é curioso vermos que os momentos mais íntimos entre as personagens, em que elas parecem desnudar-se emocionalmente uma para a outra, são excepcionalmente marcados pelo uso de voz over, pela apresentação dos diálogos de forma não diegética, criando, assim, a partir dessa dissonância entre imagem e som, um momento temporal próprio em que as jovens parecem viver, um espaço queer africano utópico, que transborda das telas e deixa uma marca ou traço de esperança nos espectadores queer quenianos de Rafiki acerca da possibilidade de uma África melhor:

O espaço utópico no cinema queniano que eu tenho discutido até aqui é um exemplo da filosofia do Afrobubblegum de Kahiu em ação, no modo em que o mundo queer dentro do filme combina com o espaço utópico dentro do cinema para criar um mundo queer utópico. Afrobubblegum, como eu já pontuei, alinha-se, num nível afetivo, com a metodologia crítica de Muñoz que vislumbra horizontes queer a partir das experiências de queers minoritários. Uma forma clara pela qual o futurismo queer e o Afrobubblegum se entrelaçam de maneiras que ressaltam a potencialidade de criação de mundo do filme de Kahiu é através da ideia do traço. Em Cruising Utopia: The Then and There of Queer Futurity, Muñoz afirma que “algo como um traço ou potencial…existe ou permanece após uma performance…nunca é somente a duração do evento” (2009, 99). Tal traço, eu argumento, pode ter sido visto entre os espectadores quenianos que assistiram a Rafiki em que ele foi exibido no Quênia em 2018. (Johnstone, 2021, p. 44, tradução nossa12)

É essa marca, esse traço, esse potencial a que Johnstone e Muñoz se referem e que podem ser vistos na arte Afrobubblegum presente na estética audiovisual de Rafiki, a partir da qual Kahiu retrata uma África divertida, feroz e frívola em que Kena e Ziki possam viver os principais momentos de sua história de amor, que tornam este segundo longa-metragem da realizadora queniana tão importante como um exemplo de possível construção de um cinema africano marcado por novas possibilidades de representação e de resistência e esperança queer, como passaremos a abordar.

3. Resistência e esperança queer em Rafiki

Em que pese, num primeiro momento, Wanuri Kahiu ter professado afastar qualquer pretensão política ou agenda de sua arte como possibilidade estética de apresentar outras Áfricas possíveis em seus filmes, não nos podemos furtar de notar que, em Rafiki, a Nairobi apresentada pela realizadora queniana, uma cidade cheia de vida e cores e oportunidades em que Kena e Ziki, apesar de todas as dificuldades, conseguem viver o começo de sua história de amor, e a própria história da vivência do relacionamento das personagens nesse espaço surgem como uma representação de uma sexualidade queer muitas vezes invisibilizada no cinema. Ao colocar o relacionamento entre suas protagonistas no centro da narrativa de seu filme, a realizadora queniana, ainda que não tenha sido esta sua vontade primordial, reveste sua obra de uma força pedagógica relevante ao retratar uma existência queer possível, convocando, assim, os espectadores a vislumbrarem e analisarem esta realidade.

Por outro lado, uma das formas mais significativas e persistentes da combinação cinema e sexualidade pode ser examinada nos filmes propriamente ditos, nas idéias que eles nos “convocam a visitar”, como diria Badiou (2005), ou nas pedagogias culturais que eles exercitam. É dessa dimensão que desejo me ocupar. Estou convencida de que os filmes exerceram e exercem (com grande poder de sedução e autoridade) pedagogias da sexualidade sobre suas platéias (Louro, 2000). (Louro, 2008, p. 82)

Tal pedagogia inerente à associação entre cinema e sexualidade, como bem apontada por Guacira Lopes Louro, torna-se ainda mais significativa no contexto de produção fílmica de países em que a homossexualidade ainda é criminalizada e/ou objeto de inúmeras violências perpetradas em nome de um padrão normativo de sexualidade que reiteradamente nega a existência a pessoas queer.

Isso é particu­larmente significativo no Quênia, onde o ordenamento jurídico continua a negar a possibilidade de uma existência queer e um discurso de “anti-homonacionalismo” é comumente empregado por políticos e líderes religiosos com o objetivo de excluir as pessoas queer da “imaginação da nação” (Van Klinken 2018, 652). Em um país onde a existência das pessoas queer é negada, Rafiki desafia os padrões estabelecidos de heteronacionalismo e heteronormatividade compulsória. O filme faz isso não apenas ao oferecer uma narativa visual do amor entre pessoas do mesmo sexo, mas, mais especificamente, como pontua Taiwo Adentuji Osinubi, ao permitir aos espectadores “imaginar a ocupação queer da vizinhança, da igreja, de instituições políticas e judiciais e de espaços públicos” (2019, 73). (Johnstone, 2021, p. 40, tradução nossa13)

Neste contexto, o fato é que Kahiu acaba por demonstrar e ensinar ao público africano que teve a oportunidade de assistir a Rafiki que, apesar de a “indivíduos queer não ser assegurada proteção legal contra discriminação sexual no Quênia, eles funcionam dentro de vários espaços liminares, criam arenas físicas funcionais e subvertem espaços hostis” (Osinubi, 2019, p. 74, tradução nossa14). A história de Kena e Ziki, assim, surge como um exemplo de resistência pela sua simples existência dentro desses espaços, um retrato fílmico das possibilidades de a comunidade queer africana viver dentro de uma estrutura que busca confinar sua sexualidade e de achar e criar novas liberdades e esperança para si.

Quero, então, pensar sobre como “Same Love (Remix)” e Rafiki, assim como o filme queniano anterior, Stories of Our Lives (como discutido na introdução de Queer African Cinemas), demonstram que diferentes formas de existir, mover-se e até mesmo respirar são cruciais para um projeto que rompe o presente sufocante desses pânicos morais, ao mesmo tempo em que reconhecem o que significa ser sobrecarregado e às vezes derrotado por sistemas de opressão. Aqui, então, volto a pensar sobre fugacidade Afri-queer como um modo de manobrar dentro de espaços de confinamento (espaços onde nem sempre se tem lugar para respirar) e de simultaneamente imaginar e criar novas liberdades. (Green-Simms, 2022, p. 173, tradução nossa15)

Mas a história de resistência de Wanuri Kahiu com Rafiki começa mesmo antes de se poder enxergar toda a importância da existência dessas protagonistas lésbicas na Nairobi de seu filme, tendo início na própria luta da diretora para ver sua obra ser exibida em cinemas africanos. Apesar de ter seguido todos os procedimentos exigidos para poder obter a certificação da exibição de seu longa-metragem pelo Kenyan Film Classification Board (obtenção de todas as licenças necessárias, submissão prévia do roteiro para aprovação, presença da polícia no set durante as filmagens), após apresentar o corte final de Rafiki para mera indicação da classificação que seria atribuída ao longa-metragem, Kahiu viu-se confrontada com uma ordem de completo banimento da obra dos cinemas quenianos pelo órgão, sob a alegação de que o final contido no roteiro anteriormente submetido havia sido alterado de modo a apresentar uma possibilidade esperançosa de reconciliação entre as personagens queer, propondo, assim, um final feliz para elas.

Com a justificativa dessa recusa recebida do Kenyan Film Classification Board, restou claro que o que se pretendia negar era qualquer possibilidade de esperança para a comunidade queer queniana e africana de uma existência possível para seus afetos, amores e desejos, como aquela experimentada por Kena e Ziki. Na cena final de Rafiki, após alguns anos de separação, em que Kena parece ter concluído o curso de Medicina e Ziki parece ter morado em Londres, Kena descobre que Ziki voltou a Nairobi e decide ir ao encontro dela. Ao chegar em frente ao edifício onde moram os pais de sua amada e ver aquelas mesmas paredes “cor de chiclete” que compuseram a primeira imagem do filme, agora com a tinta descascada e gasta, Kena não tem coragem de procurar Ziki e se dirige a um morro próximo. Enquanto está no alto desse morro, contemplando a paisagem, Kena ouve Ziki chamar seu nome, e somos, então, brindados com a última imagem do filme (Imagem 5): a mão de Ziki sobre o ombro de Kena, e o olhar e sorriso desta em direção a sua amada, enquanto começam os primeiros versos de Stay, de Njoki Karu, que apenas adicionam ao sentimento de esperança e de novas possibilidades deste reencontro (“Ande comigo, muito além do horizonte / Deite comigo, podemos colocar as estrelas para descansar / Olhando para mim, até que o sol matinal nasça / Espere comigo, apenas espere comigo até lá”16).

Que o Film Classification Board tenha reagido dessa forma, eu argumento, serve como uma confirmação do potencial das estratégias vitais de criação de mundo queer em operação em Rafiki. Isso está aparente, como afirmado acima, no modo como a história de amor queer do filme e seu final esperançoso subvertem as expectativas heteronormativas do Estado Queniano que, através de seu ordenamento legal e de seu discurso homofóbico, “promove uma cidadania nacional heterossexual inventada centrada no casamento e na família, enquanto apaga corpos, desejos e práticas queer da história do Quênia, presente e futura”. (Van Klinken 2018, 652). (Johnstone, 2021, p. 41, tradução nossa17)

Imagem 5. A cena final

Resistindo a essa tentativa de apagamento da história de esperança queer de seu filme, Wanuri Kahiu contestou o banimento de Rafiki dos cinemas quenianos pelo Film Classification Board e obteve, judicialmente, o direito de exibir seu longa-metragem nas cidades de Nairobi, Mombasa e Kisumu, por sete dias consecutivos – tempo mínimo exigido de exibição de um filme em seu país de produção original para que ele seja habilitado a concorrer a uma possível indicação ao Oscar de Melhor Filme Internacional, segundo as regras da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas norte-americana. Apesar deste pouco tempo de exibição, Rafiki entrou para a história como o primeiro filme queer queniano a ser exibido nos cinemas do país e a segunda maior bilheteria de um filme queniano até então18, com sessões extra sendo abertas para acomodar o público que queria assistir ao longa-metragem, em uma busca que os distribuidores compararam à vista quando da estreia de Pantera Negra no Quênia, no início daquele ano de 2018.

Toda essa procura e esse engajamento dos espectadores quenianos para verem Rafiki nos cinemas, por si só, já é um grande testamento ao resultado da história de resistência e esperança queer envoltos no filme de Kahiu, tanto na narrativa imersa numa estética Afrobubblegum da relação de amor de suas protagonistas, quanto em sua luta para conseguir com que seu longa-metragem chegasse às telas do país, e tudo isso é apenas reforçado pelo relato da estudante Stacy Kirui, que assim escreveu sobre sua experiência de ter assistido a Rafiki nos sete dias em que ele foi exibido nos cinemas quenianos:

Ali, naquele grande cinema, mulheres que sofriam do jeito que eu sofria me confortavam, e eu as confortava, enquanto experimentávamos uma história familiar a todas nós. No cinema, eu era confortada por outras mulheres negras queer que se identificavam com as realidades de amar outras mulheres negras sob pressão. Nós nos passávamos lenços de bolso e deitávamos nossas cabeças nos ombros umas das outras. Nós apertávamos as mãos umas das outras. Nós éramos vulneráveis. […]

Ali, no cinema, o barulho aquietou. Por um momento, nós não éramos nem o elefante na sala, nem o espetácu­lo. Nós vimos essas duas mulheres queer amadurecerem juntas e algumas de nós amadurecemos com elas. Em Rafiki, nós vimos nós mesmas, nossas vidas, nossas alegrias, nossas lutas, nossos triunfos. Nós éramos reais. (Kirui, 2018, tradução nossa19)

Rafiki, assim, para aqueles espectadores quenianos que tiveram a oportunidade de, pelo menos por uma semana, finalmente verem o filme nos cinemas do país, tornou-se um bastião de representatividade, um reflexo na tela das vivências da comunidade queer local. Com a história do desabrochar do amor entre Kena e Ziki e da luta de Kahiu para ver seu longa-metragem sendo exibido no seu país original de produção, em detrimento da ainda existência de leis que criminalizam a homossexualidade no Quênia, Rafiki marcou o cinema feito em África com traços de resistência e esperança, de possibilidades de viver, individual e coletivamente, uma sexualidade que não se permite adequar à norma imposta e de força para combater as violências que insistem em tentar apagar as existências e vivências queer.

4. Considerações finais

Em apenas seu segundo longa-metragem como realizadora, Wanuri Kahiu já demonstrou toda sua potência como criadora africana, permitindo-nos examinar a proposta estética da realizadora em contraste com olhares comuns sobre a África que se veicu­lam a uma visão afropessimista, bem como observar como a construção visual de Rafiki amplifica ideias trazidas em seu primeiro longa-metragem, From a Whisper, de representar seu país e suas pessoas de outras maneiras que não as restringissem a vítimas de pobreza, doenças ou subdesenvolvimento. Ao parecer amadurecer as premissas de sua arte Afrobubblegum e transcender seu inicial discurso aparentemente apolítico e reconhecer que a África divertida, feroz e frívola que ela pretende ver mais representada nas telas tem o potencial de apontar para novos horizontes possíveis para o povo africano, Kahiu imbuiu a história de amor entre Kena e Ziki que ocupa o centro de Rafiki não só de beleza, mas de traços e marcas históricas para o cinema queer feito em África.

Sua jornada bem sucedida de resistência e luta para ver seu filme exibido nas telas de seu país de origem, para as pessoas que ela quis ali retratar, a despeito das tentativas do governo queniano de banir a obra, e o consequente êxito obtido nas bilheterias apenas ratificam a força que o cinema queer tem de proporcionar novas oportunidades de olhar e novos focos de esperança para toda uma comunidade. A análise empreendida ao longo do presente artigo visou demonstrar como o filme usa sua narrativa e sua construção visual para criar possibilidades de felicidade e plenitude para um relacionamento queer mesmo diante de um cenário hostil, revestindo a obra de uma força pedagógica que convoca sua audiência a contemplar existências queer possíveis.

Como qualquer pesquisa, esse estudo não encerra as discussões sobre as potencialidades expressivas de Rafiki e trabalhos futuros podem contribuir para a análise do filme ao ampliar o escopo para além da questão queer trazida no presente estudo, observando o filme a partir da perspectiva da representação feminina ou explorando as interseccionalidades entre os vieses feminino e queer.

Referências

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1 Segundo levantamento realizado pela BBC News (https://www.bbc.com/portuguese/internacional-57641679), o Quênia é um dos 69 países que têm leis que criminalizam a homossexualidade.

2 Fonte: Tribunal do Quênia mantém criminalização da homossexualidade. Disponível em: https://veja.abril.com.br/mundo/tribunal-do-quenia-mantem-criminalizacao-do-homossexualismo. Último acesso em 15/11/2023.

3 Para todos os efeitos, Rafiki é considerado um filme queniano, em que pese ter sido realizado em coprodução com a África do Sul, Alemanha, Países Baixos, França, Noruega, Líbano e Reino Unido.

4 A minibio de Wanuri Kahiu aqui apresentada foi consolidada a partir de informações obtidas no site pessoal da diretora, disponível em http://www.wanurikahiu.com/, e em entrevista concedida por Kahiu para a CNN, disponível em http://edition.cnn.com/2010/SHOWBIZ/Movies/03/26/wanuri.kahiu.pumzi/index.html.

5 No original: “Afro–Bubble Gum art, ‘fun, fierce, and frivolous’ art that counters the images of poverty, sickness, and destitution that are so often associated with Africa.

6 No original: “a serious place where only serious things happen”.

7 No original: “just fun, fierce and frivolous, as frivolous as bubble gum”.

8 No original: “the advocacy of art that is not policy-driven or agenda-driven or based on education”.

9 No original: “The mise-en-scène foregrounds an ambiance of fresh possibilities so that even when the almost obligatory homophobic violence comes and goes, viewers realize Kahiu brings a story of hope. Aesthetically, the film is deliberately filmed to avoid the pessimistic narratives about sexual minorities in African countries. It is filled with bright colours and set to a vibrant Afro-pop sound track. It presents middle-class Africans who worry about and are disappointed in love without the overblown melodrama of Nollywood productions. The film also ardently propagates a view of the East African city that functions: the streets are clean, traffic flows, and its residents visit theme parks and paddle on a lake for fun. Nevertheless, the film elucidates queer social disenchantment that simmers below the threshold of the visible and beyond the habitual news of anti-queer violence. That is, it imagines specific forms of queer subjectivity that develop under certain circumstances.

10 No original: “by Afropessimist films from Hollywood, with white men and women as directors or main characters who come to the rescue of helpless Africans”

11 No original: “If there is a reason for love / it’s you who ignites this heart / If there is a season for love / you prove it is now”.

12 No original: “The utopic space in the Kenyan cinema, that I have been discussing here, is an example of Kahiu’s philosophy of Afrobubblegum in action, in the way in which the queer world within the film combines with the utopic space inside the cinema to create a queer utopic world. Afrobubblegum, as I have already pointed out, aligns on an affective level with Muñoz’s critical methodology that envisions queer horizons out of the experiences of minoritarian queers. One clear way in which queer futurity and Afrobubblegum intertwine in ways that underscore the worldmaking potentiality of Kahiu’s film is through the idea of the trace. In Cruising Utopia: The Then and There of Queer Futurity, Muñoz asserts that “something like a trace or potential…exists or lingers after a performance…it is never just the duration of the event” (2009, 99). Such a trace, I argue, could be seen among the Kenyan audience that viewed Rafiki in the seven days that it was shown in Kenya in 2018.

13 No original: “This is particu­larly significant in Kenya, where the legal framework continues to deny the possibility of a queer existence, and a discourse of “anti-homonationalism” is commonly employed by politicians and religious figures with the aim of excluding queer people from the “imagination of the nation” (Van Klinken 2018, 652). In a country where queer people’s existence is denied, Rafiki challenges the settled patterns of heteronationalism and compulsory heteronormativity. It does this not only by offering a visual narrative of same-sex love, but, more specifically, as Taiwo Adentuji Osinubi points out, by allowing viewers to “imagine the queer habitation of the neighbourhood, the church, political and juridical institutions and public spaces” (2019, 73).

14 No original: “queer individuals are not granted legal protection against sexual discrimination in Kenya, they function within various liminal spaces, create functioning physical arenas and subvert hostile spaces”.

15 No original: “I want, then, to think about how “Same Love (Remix)” and Rafiki, very much like the earlier Kenyan film Stories of Our Lives (as discussed in the introduction to Queer African Cinemas), demonstrate the different ways that existing, moving, and even breathing are crucial to a project that ruptures the suffocating present of these moral panics while also acknowledging what it means to be overwhelmed and sometimes defeated by systems of oppression. Here, then, I return to thinking about Afri-queer fugitivity as a way to maneuver within spaces of confinement (spaces where one does not always have room to breathe) and to simultaneously imagine and create new freedoms.

16 No original: “Walk with me, far above the horizon / Lay with me, we can put the stars to bed / Watching me, till the morning sun rises / Wait with me, just wait with me till then”.

17 No original: “That the Film Classification Board reacted in this way, I argue, acts as a confirmation of potential of the vital strategies of queer worldmaking at work in Rafiki. This is apparent, as stated above, in the way that the film’s queer love story and hopeful ending subvert the heteronormative expectations of the Kenyan state that, through its legal framework and homophobic discourse “promote[s] an invented national heterosexual citizenship centered on marriage and family, while erasing queer bodies, desires and practices from Kenya’s history, present and future” (Van Klinken 2018, 652).

18 Fonte: Lesbian film Rafiki shatters box office records in Kenya despite ban for ‘promoting homosexuality’. Disponível em: https://www.thepinknews.com/2018/10/02/lesbian-film-rafiki-kenya-box-office/. Último acesso em 11/10/2023.

19 No original: “There, in that big cinema, women who ached the way I did held me, and I held them, as we experienced a story familiar to all of us. In the cinema, I was held by other Black queer women who resonated with the realities of loving other Black women under duress. We passed pocket tissues around and rested our heads on each other’s shoulders. We squeezed each other’s hands. We were vulnerable. […] There, in the cinema, the noise quieted. For a moment we were neither the elephant in the room nor the spectacle. We watched these two queer women come of age together and some of us came of age with them. In Rafiki we saw ourselves, our lives, our joys, our struggles, our triumphs. We were real.