Revista Comunicación, Vol. 22, N.º 1, año 2024, pp. 1-16
DOI: https://doi.org/10.12795/Comunicacion.2024.v22.i01.01
// ARTÍCULO
Normatividades midiáticas em corpos periféricos: traços de resistência e de dominação na ficção seriada brasileira
Normatividades mediáticas en cuerpos periféricos: huellas de resistencia y dominación en la ficción serial brasileña
Media normativities in peripheral bodies: traces of resistance and domination in Brazilian serial fiction
Nísia Martins do Rosário
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil
Adriana Pierre Coca
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil
Recibido: 4 de octubre de 2023
Solicitud de modificaciones: 10 de noviembre de 2023
Aceptado: 30 de enero de 2024
Resumo
O artigo se propõe a refletir sobre como se configuram os sentidos dos corpos periféricos na ficção seriada brasileira. Nessa proposta, o conceito de corpo extrapola o âmbito físico e se refere a um conjunto mais amplo de traços que compõem a sua comunicabilidade em ambientes diversos. Partimos do pressuposto de que os corpos são geradores de sentidos com potencial para produzir semioses ilimitadas, mantendo o que é estabelecido como norma (regularidades/previsibilidades) e promovendo rupturas de sentidos (irregularidades/imprevisibilidades), logo, eles engendram sentidos claramente bio-políticos (Tucherman, 1999) e estão associados à sociedade disciplinar e à sociedade de controle (Foucault, 1979). Assim, a pesquisa direciona a atenção para os corpos apresentados em narrativas ficcionais e tidos como destoantes em relação aos padrões midiáticos e culturais vigentes, respeitando o estudo de suas linguagens e processos de significação. Privilegiamos uma condução téorico-metodológica que parte da perspectiva da semiótica da cultura (Lotman, 1996; 1999; 2013; 2021) para identificar e buscar compreender o processo de semiose de corpos periféricos na ficção seriada brasileira, tendo a cartografia como método, buscou-se sustentação na reflexão de Kastrup (2007) sobre o funcionamento da atenção do pesquisador, considerando suas quatro variedades: rastreio, toque, pouso e reconhecimento atento. Nossas observações deram conta, de forma geral, de que os textos ficcionais seriados de produções brasileiras cartografados oferecem relativo espaço aos corpos periféricos, porém com pouco protagonismo.
Palavras-Chave: normatividades midiáticas, ficção seriada, corpos periféricos.
Resumen
El artículo propone reflexionar sobre cómo se configuran los significados de los cuerpos periféricos en la ficción seriada brasileña. En esta propuesta, el concepto de cuerpo va más allá del ámbito físico y hace referencia a un conjunto más amplio de rasgos que configuran su comunicabilidad en diferentes entornos. Partimos del supuesto de que los cuerpos son generadores de significados con potencial para producir semiosis ilimitada, manteniendo lo establecido como norma (regularidades/predictibilidades) y promoviendo rupturas de significados (irregularidades/imprevisibilidades), por tanto, engendran significados claramente biopolíticas (Tucherman, 1999) y están asociados a la sociedad disciplinaria y a la sociedad de control (Foucault, 1979). Así, la investigación dirige la atención a los cuerpos presentados en narrativas de ficción y considerados desfasados de los estándares mediáticos y culturales actuales, respetando el estudio de sus lenguajes y procesos de significado. Privilegiamos un abordaje teórico-metodológico que parte de la perspectiva de la semiótica de la cultura (Lotman, 1996; 1999; 2013; 2021) para identificar y buscar comprender el proceso de semiosis de los cuerpos periféricos en la ficción seriada brasileña, utilizando la cartografía como herramienta. El método se sustenta en la reflexión de Kastrup (2007) sobre el funcionamiento de la atención del investigador, considerando sus cuatro variedades: seguimiento, tacto, aterrizaje y reconocimiento atento. Nuestras observaciones mostraron, en general, que los textos ficticios serializados de producciones brasileñas mapeadas ofrecen espacio relativo a los cuerpos periféricos, pero con poco protagonismo.
Palabras clave: ormatividades mediáticas, ficción seriada, cuerpos periféricos.
Abstract
The article proposes to reflect on how the meanings of peripheral bodies are configured in Brazilian serial fiction. In this proposal, the concept of body goes beyond the physical scope and refers to a broader set of traits that make up its communicability in different environments. We start from the assumption that bodies are generators of meanings with the potential to produce unlimited semiosis, maintaining what is established as a norm (regularities/predictibilities) and promoting ruptures of meanings (irregularities/unpredictabilities), therefore, they engender clearly bio-political meanings (Tucherman, 1999) and are associated with the disciplinary society and the control society (Foucault, 1979). Thus, the research directs attention to the bodies presented in fictional narratives and considered to be out of step with current media and cultural standards, respecting the study of their languages and processes of meaning. We privilege a theoretical-methodological approach that starts from the perspective of the semiotics of culture (Lotman, 1996; 1999; 2013; 2021) to identify and seek to understand the process of semiosis of peripheral bodies in Brazilian serial fiction, using cartography as a method supported by Kastrup’s (2007) reflection on the functioning of the researcher’s attention, considering its four varieties: tracking, touching, landing and attentive recognition. Our observations showed, in general, that the fictional serialized texts of Brazilian productions that are mapped offer relative space to peripheral bodies, but with little protagonism.
Keywords: media normativities, serial fiction, peripheral bodies.
1. Introdução
Já é consenso que há um padrão predominante de corpo que é apresentado na mídia e que corresponde ao modelo caucasiano hegemônico que se legitima nas imagens e que têm um histórico de reproduzir, preponderantemente, corpos brancos, magros, altos, cisgênero, boa aparência (belos), preferencialmente com olhos claros e cabelos lisos. Tudo isso se harmoniza aos estereótipos de beleza culturalmente aceitos. Quanto maior a faixa de público a ser atingida, mais os produtos comunicacionais usam modelos de corpos padronizados, já legitimados na gramática dos meios de massa. A consequência é a legitimação não apenas de um tipo físico, mas de um modo de ser e uma forma de comportamento. Contudo, sabe-se que nem todos os espaços midiáticos podem ser preenchidos por esse tipo de corpo, considerando, por um lado, a inexistência abundante e qualificada desses “espécimes” e, por outro lado, a crescente reinvindicação social pela diversidade. É nesse ponto que surge a inquietação de como os corpos não hegemônicos estão se inserindo e produzindo sentidos nas mídias.
Assim, o artigo se propõe a refletir sobre as corporalidades em relação a narrativas ficcionais audiovisuais brasileiras e sua articulação com os corpos periféricos, ou seja, aqueles que não correspondem aos estereótipos de beleza, estilo e conduta. Por essa proposta, já se percebe que o conceito de corpo, nesse texto, extrapola o âmbito físico e se refere a um conjunto mais amplo de traços que compõem a sua comunicabilidade em ambientes diversos. O estudo que levou ao presente artigo surgiu do diálogo entre duas pesquisas, uma delas analisa como se constituem as semioses de alteridade acerca da educação e da saúde públicas na ficção seriada nacional brasileira e a outra problematiza como se configuram os sentidos dos corpos periféricos em textos1 midiáticos. Essas investigações se entrelaçam em suas teorias basilares em dois aspectos: a semiótica da cultura – como alicerce central, pautada, sobretudo, nos conceitos de Lotman (2013; 2021) sobre a semiosfera, os mecanismos de tradução e produção de sentidos – e a cartografia inspirada em Deleuze e Guattari (1995) para a sustentação metodológica. Nessa perspectiva, delineamos um mapa dinâmico dos corpos periféricos que se apresentam nas narrativas examinadas, indicando pontos de diferentes intensidades e múltiplas conexões de sentidos. Os estudos são desenvolvidos no âmbito do Núcleo de Pesquisa Corporalidades, que faz parte do Grupo de Pesquisa em Semiótica e Culturas da Comunicação (GPESC) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) no Brasil.
A partir dessas investigações, tecemos, então, uma perspectiva de trabalho convergindo os olhares para observarmos como se configuram os sentidos dos corpos periféricos na ficção seriada brasileira. Nosso pressuposto é de que os corpos são geradores de sentidos com potencial para produzir semioses ilimitadas, mantendo o que é estabelecido como norma (regularidades/previsibilidades) e promovendo rupturas de sentidos (irregularidades/imprevisibilidades) (Rosário, 2022), portanto, eles engendram sentidos claramente bio-políticos (Tucherman, 1999) e estão associados à sociedade disciplinar e à sociedade de controle (Foucault, 1979). Logo, a pesquisa direciona a atenção para os corpos apresentados em narrativas ficcionais e tidos como destoantes em relação aos padrões midiáticos e culturais vigentes, respeitando o estudo de suas linguagens e processos de significação.
Para buscar responder a essas inquietações, privilegiamos uma condução téorico-metodológica que parte da perspectiva da semiótica da cultura para identificar e buscar compreender o processo de semiose de corpos periféricos na ficção seriada brasileira. Tendo a cartografia como método, buscou-se orientação na reflexão de Kastrup (2007) sobre o funcionamento da atenção2 do pesquisador, considerando suas quatro variedades: rastreio, toque, pouso e reconhecimento atento. Tais variedades não funcionam linearmente, mas vão se compondo de acordo com o percurso da investigação e se organizando em diversas direções e camadas. Assim, iniciou-se o percurso metodológico pelo rastreio de produtos de ficção seriada brasileira que se caracterizassem por circulação relevante e pela presença considerável de corpos periféricos, sobretudo em papéis com algum destaque. Nesse processo, o toque nos levou a novelas e séries da tevê aberta brasileira e outras que fazem parte da produção de streaming da Globoplay e que são relativamente atuais. Coletamos 20 produtos, sobre os quais aplicamos a atenção pela variação do pouso, levantando quantidade e qualidade de participação dos corpos periféricos e os contextos em que aparecem. A análise detalhada dos materiais audiovisuais (reconhecimento atento) ainda está sendo desenvolvida, mas também começou pelo rastreio e toque para chegarmos a sequências de destaque para o exame atento que revela modos de manifestação desses corpos e os sentidos que estão produzindo. Na impossibilidade de trazermos, para esse artigo, todos os dados levantados, produzimos um pequeno mapa audiovisual de corpos periféricos em ficção seriada brasileira contemplando o que foi delineado até o momento. Por outras palavras, buscamos apresentar um primeiro olhar sobre a produção brasileira de ficção seriada e o modo como se constroem os sentidos sobre os corpos não hegemônicos.
O artigo está dividido em dois momentos, além desta introdução e das considerações finais. Começamos explicitando pressupostos teóricos que organizam o processo comunicacional e semiótico dos corpos e, em seguida, buscamos explicar como se constroem as semioses midiáticas dos corpos periféricos que habitam as narrativas ficcionais.
2. A semiosfera como ambiente de comunicação e semiose
Como já discutido amplamente em pesquisas anteriores (Coca, 2018; 2019; 2023; Rosário, 2021; 2022; Rosário; Coca, 2018), os sistemas culturais coexistem e produzem significação em um espaço semiótico denominado semiosfera por Lotman (1996), uma dimensão abstrata que estabelece diálogos entre diferentes sistemas semióticos, constituindo-se como ambiente propício para as semioses (processos de significação) e para a comunicação. Como espaço de realização da semiótica e da comunicação, a semiosfera está em constante movimento, pois é aberta a informações externas/novas, as quais podem ser incorporadas ou rejeitadas por esse ambiente dinâmico. Para o recorte dessa pesquisa, estamos considerando uma semiosfera das mídias como um espaço-tempo que se organiza por meio de sistemas semióticos diversos em articulação, pautado pela produção de textos informativos, ficcionais e de entretenimento, mas igualmente articulado sobre o sistema econômico. Uma das marcas da semiosfera das mídias é a comunicação para grande número de enunciatários engendrando variados processos de semiose, mas buscando elaborar textos que tenham determinadas regularidades, continuidades e previsibilidades e, assim, sejam de fácil tradução. No objeto escolhido destacam-se os sistemas semióticos do audiovisual (ficção seriada) e os sistemas semióticos das corporalidades (corpos periféricos).
A semiosfera, segundo Lotman (1996), compõe-se de um centro, ou seja, um núcleo formado por elementos invariantes no qual os códigos e as regras de funcionamento dos sistemas semióticos são mais rígidas, padronizadas, normatizadas e, portanto, com traduções mais previsíveis. Nesse âmbito, se concentram os textos hegemônicos da cultura, amplamente aceitos e legitimados, que se constroem na repetição de modelos, formatos e conteúdos. Na semiosfera das mídias brasileiras, no que se refere à ficção seriada, estão ao centro, por exemplo, as telenovelas, sobretudo, aquelas exibidas no horário nobre, faixa de exibição da TV aberta e generalista que ainda garante a audiência mais alta das obras de ficção em série no Brasil. Para além do centro, a semiosfera vai se compondo de formas variadas até chegar as suas fronteiras (margens), onde se mostram com mais intensidade os elementos variantes, aqueles que permitem remodelações dos sistemas culturais, a alteração de códigos, a criação e a descontinuidade sobre as regularidades e as previsibilidades. Esses, portanto, são espaços ocupados por textos que estão mais suscetíveis a mudanças, que articulam novas informações, novos modos de produção e, em consequência, podem gerar dificuldades de tradução. Nessa via, podemos citar como produções expressivas que ficaram nas fronteiras da ficção seriada, criadas como obras originais para o canal aberto, as minisséries A Pedra do Reino (2007) e Capitu (2008), dirigidas por Luiz Fernando de Carvalho, ambas obtiveram baixa audiência (Coca, 2018).
Em estudos realizados nos últimos anos (Coca, 2019; 2023), recorremos à Américo (2017) para aclarar o entendimento de fronteiras semióticas, as quais podem ser associadas às fronteiras geográficas, isto é, podemos pensar em uma semiosfera da cultura brasileira e uma semiosfera da cultura estadunidense. Entretanto, as semiosferas também se constituem para além dos limites de uma nação, como é o caso do ambiente semiótico-comunicacional de ficção seriada que vem se consolidando no mundo ocidental em conexão com as criações estadunidenses, latino-americanas e europeias. Ao mesmo tempo, as semiosferas podem ser diferenciadas historicamente, ou seja, é possível distinguir a cultura portuguesa contemporânea da cultura portuguesa do século XVIII. Américo (2017) explica que se trata de um processo ambíguo e bilateral, pois um texto da cultura pode romper seus limites e se redirecionar para fora da sua semiosfera, sendo (ou não) assimilado por outras. Desse modo, quando situados na zona de fronteira, os textos culturais estão sujeitos tanto a separação quanto a união, pois são considerados próprios de determinado espaço semiótico, ou alheio a ele, dependendo do ponto de vista do observador. Rosário (2022, p. 185) afirma que a “fronteira está, pois, nesse espaço-tempo que liga (ou pode ligar) o extrassemiótico ao semiótico, uma vez que é o lugar da tradução por excelência”. A autora observa que há espaços de conflitos tradutórios que, com os movimentos da semiosfera, podem ser assimilados ou expulsos desta. É por esse motivo que o que está fora do nosso ambiente comunicacional parece ser incompreensível e os textos que atravessam a fronteira da semiosfera em que estamos inseridos, à primeira vista, são inacessíveis, confusos e até intradutíveis.
Assim sendo, os corpos observados por esta pesquisa são aqueles que não se encontram inseridos no núcleo da semiosfera midiática, mas transitam numa zona fronteiriça ampliada, a periferia dessa semiosfera, por isso, são pensados como corpos periféricos. Dentro de uma perspectiva hegemônica, poderíamos entender os corpos periféricos como os que apresentam deficiências físicas, deficiências mentais, miserabilidade (como pessoas em situação de rua, pessoas que vivem de esmolas), gêneros não normativos (como travestis, trans, efeminados, masculinizadas, queer, não binários/as etc.), formas físicas fora do padrão, entre outros. Em se tratando de produtos de circulação de massa, as previsibilidades e continuidades desse sistema semiótico levam a um tipo de corpo dominante já descrito aqui. Todavia, suas imprevisibilidades e descontinuidades causam tensionamentos e, por vezes, momentos de intradutibilidades – por não se submeterem aos modelos legitimados e às regularidades esperadas dos textos midiáticos – que levam, frequentemente, à rejeição e à exclusão. É relevante considerar o sentido etimológico de ‘rejeitar’ que está associado a palavra abjeto, significando “deixar fora, abandonar, baixar o valor”. É nessa perspectiva que se constroem, muitas vezes, as traduções desses corpos midiáticos. Para a autora (2022), esses corpos devem ser observados pelo ponto de vista da exclusão, mas sem deixar de considerar que, de algum modo, se impõem como potência de resistência, porque provocam uma desestabilização comunicacional no âmbito midiático. Nos códigos midiáticos e culturais rígidos, a tendência em relação ao diferente é justamente a da exclusão, o lançar para longe. Não se ignora, entretanto, que há diversos movimentos de inclusão daquilo que é diferente, que, entretanto, ainda não têm a força necessária para fazer frente aos sentidos mais consolidados – a abertura para o diferente significaria que o fora do padrão midiático teria espaço legítimo de representatividade, aceitação e apreciação pela inserção de outras estéticas e éticas, ou seja, não seria desqualificado ou estereotipado. É nessa perspectiva que os corpos periféricos são entendidos como inapropriados e, em consequência, desajustados, por vezes impublicáveis no âmbito midiático e rejeitáveis nos âmbitos social e cultural. Eles são capazes de engendrar textos que comunicam contrariedade às normalizações das linguagens vigentes. São corpos claramente periféricos desde o ponto de vista da semiosfera. Logo, ressaltamos que não se conformam às regras, às regularidades, às previsibilidades e às normatividades do centro da semiosfera midiática e, como era previsível, estão situados na periferia desta e tendem a ser excluídos.
3. Corpos periféricos na ficção seriada brasileira
Isto posto, seguimos com o tensionamento da teoria em relação aos objetos observáveis, que se concentrou, portanto, na problemática sobre os modos de expressão que se projetam sobre os corpos periféricos na composição das narrativas ficcionais seriadas brasileiras. Partimos do pressuposto de que tais corpos têm algum espaço no audiovisual midiático, geram sentidos e, por vezes, assumem protagonismo, mas queremos compreender como expressam a alteridade e que papéis assumem, portanto, que sentidos produzem.
Destacamos nesse artigo alguns dos reconhecimentos que fizemos na cartografia da ficção seriada brasileira, considerando corpos periféricos que são apresentados de diferentes maneiras em telenovelas e séries da TV aberta e do streaming. Para essa reflexão, sinalizamos observações realizadas, principalmente em telenovelas e, especialmente, em uma série, todas produzidas pelos Estúdios Globo, que é o canal hegemônico no Brasil. Como dito anteriormente, seguimos os pressupostos do método cartográfico, sugerido por Kastrup (2007), que é conduzido em quatro fases (rastreio, pouso, toque e reconhecimento atento), que não necessariamente são lineares. Para tanto, realizamos um sobrevoo ao selecionar 20 produções, que nos chamaram a atenção, sobretudo, por sua relevância e por terem personagens que representam corpos periféricos em suas narrativas.
A fase de rastreio, foi um “gesto de varredura” (Kastrup, 2007, p. 18), não um processo em busca de informação sistematizada, ainda, apenas um movimento de abertura para conhecer o objeto empírico e as afecções que surgem dessa percepção preliminar. Avançamos com mais acuidade ao definir quais personagens destacadas seriam mais representativas e fariam parte a análise propriamente dita, nessa fase, etapa denominada toque, “a atenção, numa atitude de ativa receptividade, é tocada por algo” (Kastrup, 2007, p. 19). A partir daí, buscamos contextualizar essas produções e iniciamos as observações mais assertivas. Nas palavras de Kastrup é a fase do pouso, quando realizamos, como em uma câmera de vídeo, um movimento de zoom: “há um trabalho fino e preciso, no sentido de um acréscimo na magnitude e na intensidade” (Kastrup, 2007, p. 20) do processo, para ser possível, por fim, tecermos as relações teóricas mais estreitas, que é a fase do reconhecimento atento, instante que culmina com as análises do objeto empírico entrelaçadas à teoria de base que é a semiótica da cultura e que expomos a seguir.
Assim sendo, destacamos que, por exemplo, em produções atuais esses corpos/personagens foram protagonistas de algumas tramas ficcionais, o caso da perfumista cega (Interpretada pela atriz Sophie Charlotte) da telenovela Todas as Flores (2022/2023)3 da plataforma de streaming Globoplay – que, posteriormente, foi transmitida no canal aberto. Em conexão com a falta de visão, o perfil de Maíra foi construído sob o contexto da jovem bem-sucedida, independente, saudável, com estética física bela e muito adequada ao hegemônico, ou seja, um corpo com o traço periférico da deficiência física, contudo, apoiado no fator compensatório (Rosário; Aguiar, 2015) com a apresentação de outros traços hegemônicos “adequados”. A trama revela fragilidades da personagem em relação aos considerados “normais”, muitas vezes ela é tratada por termos pejorativos, humilhada pela irmã por ser cega, mas mostra-se determinada e resiliente. O final feliz, como em quase todas as ficções desse tipo, alcança a protagonista que, rica, fica com seu amor (par romântico) e com mais um filho a caminho. No decorrer da trama, ela realiza uma cirurgia e recupera parte da visão, passando a ser uma deficiente visual de baixa visão. Essa condição não é enredada como um prêmio à personagem, soa mais como um recurso narrativo importante para a concretização da vingança exercida pela mocinha contra os seus antagonistas. Apesar de apresentar outras personagens cegas, a telenovela não tem foco nas questões da cegueira e das pessoas com problemas visuais, seus problemas, dificuldades, inadaptação, entre outros, o tema é abordado, sim, mas nas subtramas. Em um conflito secundário, por exemplo, um jovem cego se inscreve e fica entre os finalistas de um concurso de modelos que ocupa alguns capítulos da história, disputando com outros candidatos sem nenhum tipo de deficiência. É evidente que houve uma preocupação em não tratar as personagens com deficiência visual com capacitismo, situando esses corpos periféricos como pessoas capazes de exercerem suas atividades profissionais e do dia a dia como qualquer outra. Essa opção é explícita inclusive nos diálogos das personagens com deficiência e no desenvolvimento de suas tramas, pois elas se envolvem afetiva e sexualmente, mas essas relações são apenas evidenciadas em suas falas, não são enfatizadas em cena. Todas as personagens são independentes e bem sucedidas em suas atribuições profissionais, aliás a ambientação principal em que contracenam é o local de trabalho, cenário central da narrativa, a loja de departamentos Rhodes. A única personagem que atua em outros ambientes/cenários é a protagonista, Maíra, uma perfumista de excelência, o que demonstra que sua deficiência a fez aguçar outros sentidos como o olfato, tornando-a sensível para a criação de novas fragrâncias de perfumes. Assim sendo, com exceção dela, os corpos periféricos em Todas as Flores têm um foco secundário, ainda que tenhamos ciência da importância de estarem representados em uma ficção seriada produzida pelos Estúdios Globo, pois sabemos que, ao longo da longeva história das telenovelas brasileiras, são raras as construções de personagens com deficiência visual4. No entanto, assim como sua protagonista, que apesar da deficiência visual, é construída sob os aspectos de personagens hegemônicos, a trama de Todas as Flores é uma narrativa que também se constitui sob os aspectos estruturais de uma história melodramática clássica, ao apresentar uma jovem sofredora e injustiçada, que atravessa revezes, se fortalece e enfrenta os seus inimigos motivada por uma vingança e por sede de justiça, ou seja, há mocinhos definidos, conflitos demarcados e um desfecho pouco surpreendente com os malvados sendo punidos e os bons felizes e recompensados pelo sofrimento vivenciado. Essas características situam Todas as Flores no formato de uma telenovela canônica, ainda que traga em sua tessitura uma narrativa ágil que se assemelha às ficções de séries. Aliás, talvez esse aspecto possa ser considerado como uma atualização ao formato telenovela e se justifica pelo fato de ter sido uma obra pensada originalmente para o streaming, que, entre outras reconfigurações, muda a maneira como os capítulos da novela chegam ao público, enquanto na TV aberta a obra foi exibida diariamente de segunda a sexta, na plataforma digital os capítulos foram disponibilizados em blocos, semanalmente. A telenovela trouxe um encadeamento narrativo que privilegiou ganchos de sentidos determinantes, sobretudo, a cada bloco de capítulos, mas não aderiu, por exemplo, a um formato episódico, característica mais comum às séries, como observamos na produção Segunda Chamada que será mencionada na sequência.
Na segunda temporada da série Segunda Chamada (2021)5, outra obra original da Globoplay, os estudantes do período noturno da Escola Estadual Carolina Maria de Jesus são pessoas que vivem em situação de rua. Pode-se dizer que esses corpos periféricos são a pauta da temporada. Nesse enredo há um tensionamento importante ao colocar duas semiosferas diferentes em interseção e tensionamento (a do ambiente dos moradores de rua e a do ambiente da escola), o retorno aos estudos muda a vida dos novos alunos, ao mesmo tempo que seus problemas pessoais passam a afetar a rotina da escola.
Na narrativa ficcional, a escola se converte em uma semiosfera alheia para aqueles estudantes recém-chegados (e vice-versa), um novo ambiente que impôs novos códigos e sentidos a serem dominados (Coca, 2023), para isso foi necessário estabelecer diálogos, muitas vezes conflitivos, entre essas semiosferas. Os tensionamentos se mostram ao longo da história e muitos dramas são delineados, em uma das sequências uma jovem aluna, que vive em situação de rua, denuncia sua vulnerabilidade quando é acusada de furtar rolos de papel higiênico dos banheiros da escola. A ação foi motivada pela necessidade de higiene íntima e proteção já que a moça estava menstruada e não tinha absorventes.
Em outra cena emblemática, os alunos que vivem em situação de rua descobrem que seus pratos, onde é servida a merenda, receberam uma marca para diferenciá-los dos utensílios dos outros estudantes. Esse fato gera revolta, expressa verbalmente pelo líder do grupo: “Vocês acham que a gente é bicho?”. Esse conflito marca uma dificuldade de tradução já que o grupo de alunos parece não corresponder os códigos hegemônicos de “estudantes”; sinaliza, também, um modo tradutório estereotipado em que se destacam os sentidos de falta de higiene e contaminação – uma vez que não deveriam utilizar os mesmos pratos dos demais. Por outras palavras, eles são entendidos pelos funcionários da escola como pessoas diferentes, como alteridade que, de alguma forma, se torna perigosa, talvez até indignas de estar naquele ambiente e compartilhar do mesmo espaço e dos mesmos objetos. A comunicação das diferenças e da exclusão se deu, predominantemente, por meio da aparência física e da vestimenta, gerando o desejo desses alunos de desistirem de estudar, contudo, são convencidos pelos professores a resistir. Essa situação expõe que as traduções são feitas, muitas vezes, a partir de códigos e memórias não compartilhadas (Lotman, 1999) entre os sujeitos comunicantes e, nesse caso, se prende a um sistema modelizante6 (Lotman et al, 1981) rígido.
Os seis episódios da temporada revelam, ainda, outros corpos/sujeitos periféricos a exemplo do aluno indígena, que é hostilizado pelos colegas num primeiro momento e depois acolhido por eles e do estudante cadeirante, que, apesar de todos os problemas que enfrenta para frequentar a escola por causa da falta de acessibilidade ao local e pela cidade, resiste e ganha a empatia dos colegas.
Segunda Chamada apresentou índices de audiência oscilantes na tevê aberta, sendo exibida logo após a novela das 21h – horário nobre. Se pautou por apresentar corpos invisibilizados social e midiaticamente, apontando temáticas que trazem à tona problemas sociais importantes do Brasil e de outros países, em conexão com a educação: vulnerabilidade social, feminicídio, violência sexual, questões étnicas, racismo, maternidade, etarismo, trabalho infantil, entre outros. Tendo como pano de fundo o contexto do ensino noturno de uma escola de periferia, a série deu espaço a corpos periféricos e seus dramas, abordando, também, a resistência acionada por eles, que lutam para sobreviver e, ao mesmo tempo, precisam engendrar formas de estar no território.
Na TV aberta, em 2023, destacam-se, ainda, os protagonismos de personagens negras em três novelas inéditas e sendo transmitidas concomitantemente na TV Globo. As produções são: Amor Perfeito, na faixa das 6 da tarde, Vai na Fé por volta das 7 horas e Terra e Paixão como a telenovela das 9 da noite.
Importante lembrar que além dos papéis centrais, outros atores negros foram escalados para essas produções, muitos deles ainda desconhecidos do grande público. A partir de críticas dos espectadores e de movimentos sociais sobre o escasso elenco negro, a emissora teve que se curvar ao mercado e se adaptar para atender aos consumidores, assim, a representatividade de pessoas negras nas telenovelas da Globo cresceu exponencialmente, ocupando espaços de destaque não habituais, tanto é que muito tem se noticiado sobre esse fato no Brasil e no exterior. Em reportagem de página inteira, em maio de 2023, o jornal britânico “The Guardian”, na sua seção Mundo publicou uma matéria intitulada Brazil´s wildly popular soaps now reflect viewers’racial mix. (As populares novelas brasileiras, agora, refletem a mistura racial dos telespectadores7). É sintomático que o título da matéria jornalística diga que “agora” as telenovelas reflitam a miscigenação de raças dos brasileiros. Sabemos que as telenovelas por anos foram, talvez ainda sejam, o principal produto de ficção seriada consumido no Brasil e também exportado, mas só atualmente personagens negras assumem o protagonismo das principais tramas que estão no ar pela TV Globo, que é a emissora hegemônica do país. Saindo de papéis secundários – que geralmente os escalavam para trabalhadores domésticos, escravos, agricultores, retirantes – os atores negros ganharam outra relevância e ajudaram a narrar histórias de vida de corpos periféricos que se reterritorializaram em diferentes contextos. Precisa-se, contudo, voltar a atenção para os desdobramentos e a consolidação desse espaço.
Na telenovela Terra e Paixão encontramos, ainda, a personagem de uma criança albina que expõe conflitos sofridos por pessoas com essa condição genética. A história é escrita por Walcyr Carrasco, autor que costuma apresentar corpos periféricos em suas tramas, como na telenovela O outro lado do paraíso (2017/2018), que também foi ao ar na faixa das 9 da noite na TV Globo, em que uma personagem anã era rejeitada pela própria mãe e na trama de época Êta mundo bom! (2016), novela das 6 da tarde, em que uma criança cadeirante sofria nas mãos da madrasta. Embora não tenha sido escrita pelo mesmo autor, outra personagem infantil e cadeirante também se destacou na trama de época recente Amor Perfeito. Nesse caso, houve a preocupação em escalar uma atriz mirim que de fato é cadeirante, a pequena Vitória Pabst de apenas 7 anos.
A inserção perceptível de personagens diversas em narrativas ficcionais seriadas atuais produzidas pelos Estúdios Globo se deve também ao fato da criação de um departamento dedicado à diversidade8, com a missão de fomentar a diversidade em suas novelas, séries e programas, o departamento foi inaugurado há pouco mais de um ano, em outubro de 2022.
Uma reflexão de Miskolci (2009) ajuda a considerar um possível modo de funcionamento midiático para as diferenças, ao invés de se deixarem assimilar para então serem normalizadas, deveriam ser multiplicadas: “a crítica da normalização aposta na multiplicação das diferenças que podem subverter os discursos totalizantes, hegemônicos ou autoritários” (Miskolci, 2009, p. 175). Nessa perspectiva, pode-se prever outra forma de funcionamento da semiosfera midiática e compreender que significar-se não é submeter-se passivamente aos sistemas modelizantes rígidos, mas, sim, tensioná-los e subvertê-los, promovendo e reconhecendo a existência da diversidade.
De modo pulverizado, há outras personagens que também se infiltram e resistem às normatizações da mídia e se impõem em narrativas canônicas, também exibidas pela TV Globo. É o caso da personagem travesti Sarita Vitti (Interpretada pelo ator Floriano Peixoto) na telenovela Explode Coração (1995), que era do sexo masculino, mas se identificava com o gênero feminino. Sarita, personagem secundária, caiu nas graças do público, que na época se mostrou um pouco confuso, porque a identidade de gênero de Sarita não era explicitada na narrativa ficcional. Era exatamente isso o que a autora Glória Perez queria, que Sarita representasse uma personagem humanizada e sem uma identidade de gênero pré-definida. Vinte e dois anos depois, Glória Perez, mais uma vez, tocou em um tema polêmico em relação à identidade de gênero na telenovela A força do querer (2017), quando narrou o processo de transição da personagem Ivana (Interpretada pela atriz Carol Duarte) para Ivan.
Butler (2020) problematiza a questão do corpo refletindo sobre como a vulnerabilidade e a resistência configuram-se como marcadores relevantes para entender a subalternidade. Muitos dos corpos periféricos estudados por essa pesquisa se enquadram, sem dúvida, nesse cenário tensionado pela autora. A precariedade se institui como uma condição para a maximização da vulnerabilidade a que determinados grupos estão submetidos, a falta de redes de apoio os expõem de diferentes maneiras à violência – como, por exemplo, os moradores de rua ou as travestis que precisam ser trabalhadoras do sexo. Evocamos, mais uma vez, uma personagem da série Segunda Chamada, que sintoniza com a reflexão de Butler (2020). É a trama de uma das alunas da escola que vive em situação de rua e que se disfarça de homem, porque tem pavor em pensar que descubram que ela é mulher, afinal, ser mulher a torna mais vulnerável às violências das ruas. O medo dela, entretanto, se justifica por conta de uma agressão sexual sofrida pelo padrasto dentro de casa, tornando as mulheres e as crianças também corpos vulneráveis.
A autora (Butler, 2020) observa que o corpo da precariedade precisa ser pensado em relação às situações ambientais e de infraestrutura que atravessam a sua vida, bem como em conexão com os modos de apoio que recebe (ou não). Em geral, ele não está autorizado a aparecer e participar da esfera pública e da esfera midiática por não ter legitimidade suficiente nos sistemas semióticos hegemônicos e, assim, pode-se deduzir que existem restrições e procedimentos de exclusão que operam sobre esses corpos e que os tornam ainda mais precários.
Esse quadro leva a pensar nas personagens idosas que observamos e que também podem ser refletidas como corpos periféricos na ficção seriada, na maior parte das vezes se revelam frágeis, não ocupam protagonismo, tendem a ser excluídos do convívio familiar e não têm autonomia (a série Segunda Chamada, aliás, também retratou a etariedade, na personagem de um estudante idoso (Interpretado pelo ator Moacyr Franco) que começa a demonstrar sinais do Mal de Alzheimer e necessita ser acolhido por alunos e professores). Uma exceção é a personagem de Dona Picucha na série global Doce de Mãe (2014), que garantiu à atriz Fernanda Montenegro o prêmio Emmy Internacional de melhor atriz. Na trama, as relações familiares são o foco, mas giram em torno da idosa de 85 anos, que retrata os desafios próprios da idade com humor, desse modo, parece ser a comédia que vence e, ao mesmo tempo, intensifica o etarismo. A telenovela Mulheres Apaixonadas (2003), por outro lado, apresenta de forma mais dramática a trama secundária de um casal idoso que vive no apartamento do filho e é maltratado e furtado pela neta. A novela, que está sendo reprisada atualmente (2023), em sua primeira exibição teve grande repercussão na mídia e reforçou a pressão no Senado Federal pela aprovação do Estatuto do Idoso.
4. Considerações finais
As condições de vida dos corpos periféricos são engendradas e impostas pelo funcionamento da cultura, sobretudo no âmbito social, político e midiático. As mídias hegemônicas são reprodutoras dos códigos, dos sistemas modelizantes e das narrativas que legitimam um tipo de corpo “aceitável”, estabelecendo continuidade, regularidade e previsibilidade a determinados padrões. Nesse processo, pelo seu grande alcance e circulação, tais mídias têm o poder de afetar a todos os que a consomem e repercutir suas mensagens no socius, afetando os modos de vida também de outros campos. Nessa via, os corpos periféricos que não conseguem se inserir nos modelos dominantes precisam lutar por espaços de expressão – que não lhes são dados de graça – e são obrigados a enfrentar a falta de reconhecimento, de legitimidade, de inclusão e de possibilidade de manifestação comunicativa.
Ainda que não seja o objetivo destes corpos ocuparem espaços ‘marginais’ (estar à margem), sua expressão, por mais adaptativa que seja, gera tensionamentos, irregularidades e até incompreensões, porque não atendem a modelos padronizados da expressão comunicativa prevista na linguagem canônica. É por essa via que eles acabam se impondo como potência de resistência. Lembramos que o campo semântico de resistir nos leva a atentar para a luta para sobreviver e, ao mesmo tempo, para uma forma de estar no mundo que insiste em existir. Ou seja, uma possibilidade de corpo que re-existe e, dessa maneira, re-significa modos de ser e modos de construir textos culturais. Essa relação nos faz recordar uma frase que foi repetida várias vezes pelo ator, dramaturgo e diretor teatral recém falecido, José Celso Martinez Corrêa, que dizia “Eu não sou de resistir. Eu sou de reexistir.”, o que faz muito sentido se considerarmos o papel revolucionário que ele teve na história do teatro brasileiro e do mundo.
É assim que reverbera a inserção dessas personagens nas tramas globais, sobretudo, quando ocupam os papéis de mais destaque como àquelas criadas na segunda temporada da série Segunda Chamada (Globoplay, 2021), que privilegiou a diversidade com representações das pessoas que vivem em situação de rua, com deficiência, indígena e mulheres em vulnerabilidade. De modo mais efetivo, isso acontece quando os corpos periféricos assumem de fato o protagonismo nas histórias narradas, como as personagens negras das telenovelas dos três horários inéditos no canal aberto, em 2023, Amor Perfeito, Vai na Fé e Terra e Paixão.
De forma mais tímida, ocupando um espaço relativamente menor, essa pesquisa também detectou algumas representações de corpos periféricos em personagens ficcionais trans, personagens que tiveram repercussões positivas e que enfrentaram um estranhamento por parte do público e que, embora não tenham enredado as narrativas centrais e tenham surgido de forma pulverizada, de tempos em tempos, parecem ter despertado reflexões no público. Citamos anteriormente a travesti Sarita Vitti em Explode Coração (1995), um homem com alma feminina e Ivana/Ivan de A Força do Querer (2017), que percorre na ficção seu processo de transição de gênero, ambas tramadas para telenovelas das nove da noite, horário nobre, escritas por Glória Perez e exibidas no canal hegemônico. Nos dois casos, houve uma resposta do público, por conta da polêmica gerada, por seu ineditismo, por fomentar descobertas, pois até então não “existiam” nas narrativas ficcionais. Nessa mesma via, só que sob um outro viés, também mencionamos personagens idosas que geraram repercussões e romperam com a normatividade, como o casal idoso de Mulheres Apaixonadas (2000), que há 20 anos acirrou as discussões no Senado Federal que culminaram na criação do Estatuto do Idoso. No entanto, também percebemos a inserção de personagens que, embora tragam traços periféricos, foram constituídas de forma a atender os aspectos de personagens e narrativas hegemônicas, como a protagonista da telenovela Todas as Flores (Globoplay/2022/2023), que reforça estereótipos fortalecidos ao longo do tempo, apesar de apresentar um traço periférico que é a cegueira e a personagem Dona Picucha da série Amor de Mãe exibida na TV aberta, ela é uma personagem principal de 85 anos, que tem sua história contada revestida de humor, a velhice e seus aspectos característicos são tratados/encobertos pela comédia.
Vale observar que os corpos periféricos na ficção poderiam ter sido abordados, ainda, por outras perspectivas teóricas, sobretudo a da interseccionalidade (Akotirene, 2019) que se prestaria a produzir atravessamentos importantes nas avenidas identitárias dos personagens e, em função disso, na criação de sentidos sobre a trama. Contudo, em função dos limites de páginas de artigos científicos e da necessidade de tratar esse conceito com seriedade, entendemos que seria mais adequado deixar para outro momento.
Pode-se, então, entender que corpos periféricos, ao serem inseridos em processos semiósicos, são engendradores de tensão porque buscam ter existência num ambiente que tende a excluí-los. Ou seja, há neles sobras e faltas de códigos, de signos, que se impõem às linguagens. Se os corpos drag manifestam o excesso de signos, os corpos com deficiências podem exibir a falta deles. Nesse processo, se configuram traços distintivos de uma existência atravessada pelo tensionamento dos signos, disputas de sentidos, bem como por procedimentos de poder.
Tudo leva a crer que é importante que o público se reconheça nas telas. Mas, como estratégia de certa forma perversa, parece também ser relevante ver nelas o estranho, o outro, o reflexo de si pelo avesso. Assim, a alteridade conquista seu espaço midiático (Rosário, 2021).
Nossas observações deram conta de que as personagens/sujeitos representadas/os em corpos periféricos se comunicam de acordo com as semioses constituídas sobre as normatividades midiáticas e, a depender do seu grau de alteridade, têm a tendência a produzir sentidos de inadequado, inaceitável, inapropriado, vergonhoso, vulnerável, inconveniente, precário, entre outros. Contudo, é importante relatar que se encontrou potências outras em vários desses corpos, por vezes, distinguindo-os das categorias de sentido mencionadas anteriormente. Se, por um lado, eles produzem sentidos de resiliência e adaptabilidades às normas hegemônicas, por outro, nas re-significações que produzem, trazem inventividade, criatividade, determinação e resistência, além de um devir de coexistência coletiva.
A partir das perspectivas apresentadas, pode-se afirmar que, de forma geral, os textos ficcionais seriados de produções brasileiras que foram cartografados oferecem relativo espaço aos corpos periféricos, porém com pouco protagonismo. Os movimentos da sociedade, as demandas dos consumidores e anunciantes têm direcionado os modos como esses corpos são apresentados, todavia um eixo geral persiste encaminhando para os sentidos de alteridade, de não igualdade, por conseguinte, manifestam-se as estratégias de exclusão e de não pertencimento. Por vezes, são impostas a eles camadas de sentido de carência (não só financeira) como as personagens da série Segunda Chamada, visando despertar algum tipo de compaixão. Outras vezes, é enfatizado seu poder de superação, contribuindo para criar um modelo de aquiescências a tal condição, como sinalizado na constituição das personagens cegas ou com baixa visão em Todas as Flores. Os textos midiáticos analisados não podem ser traduzidos diretamente como preconceituosos, hostis ou intolerantes, apesar de retratarem condições em que preconceito, hostilidade e intolerância acontecem. As mensagens são, geralmente, de não concordância com tais práticas, seguindo o “politicamente correto”, o que não traduz um posicionamento político de aceitação e reconhecimento desses corpos, mas, sim, de necessidade de inserção deles no campo midiático – seja por motivos econômicos, capitalísticos, sociais ou de cidadania.
É preciso evidenciar e problematizar as muitas camadas de sentidos que se formam em cada texto midiático e as competências tradutivas do público. No emaranhado de diversas linhas de força, esses textos vão compondo as semioses dos corpos periféricos, os quais necessitam de existência midiática para demarcar espaços e diferenças; a suposta abertura de território para eles tem uma tendência a se consolidar, mas entendemos que os interesses capitalísticos é que estão determinando esse processo. No momento, parecem ser as fissuras midiáticas que os deixam transparecer e os corpos condenados ao apagamento passam a se manifestar, a existir e a resistir. Sem condições ou sem o desejo de assumir a existência “adequada”, esses corpos são atravessados pelas asperezas, brutalidades, crueldades e tensionamentos da linguagem, da cultura, da sociedade, da economia e, evidentemente, da mídia. Para combater as desigualdades, vão buscando formas alternativas e peculiares de enfrentar questões midiáticas, éticas e políticas. Nesse percurso, vão construindo textos que expressam as suas diferenças, que tensionam os sistemas comunicantes e que expõem o seu modo de re-existir.
Desse modo, de maneira molecular ou molar, organizada ou não, coletiva, individual ou por meio de pequenos grupos, tais corpos, apenas por existirem, acabam por disputar um modo outro de existência que resiste aos sistemas patriarcal, capitalista e colonizador. Por essa via, tornam-se corpos políticos, de manifestação da alteridade e com potência para transformar processos de significação, já que há subversão e transgressão latentes neles.
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1 Estamos entendendo “texto” pelo viés da semiótica da cultura. Portanto, eles não se restringem a formações de mensagens linguísticas, mas permitem a realização da mensagem, como um dispositivo complexo que abarca diversas linguagens.
2 Essa reflexão de Virginia Kastrup se constrói sobre uma perspectiva construtivista que se baseia no conceito de atenção flutuante de Freud e no reconhecimento atento de Bergson.
3 Outras informações sobre Todas as Flores podem ser consultadas em: https://g1.globo.com/jornal-da-globo/noticia/2022/10/25/todas-as-flores-a-novela-que-e-um-conto-de-fadas-cheio-de-suspense-romance-e-vinganca.ghtml
4 Há personagens marcantes com deficiência visual nas telenovelas globais, mas não é possível dizer que são corriqueiros. No levantamento inicial dessa pesquisa, destacamos a personagem Anita da telenovela Caras & Bocas (2009), na ocasião, Danieli Haloten ficou conhecida por ser a primeira atriz cega a ter uma personagem fixa em uma telenovela brasileira. Antes dela, em 2005, na novela América, Bruna Marquezine interpretou Maria Flor, uma criança cega, que era auxiliada por Jatobá, que também era cego, interpretado pelo ator Marcos Frota. A preocupação em incluir pessoas com deficiência na produção audiovisual é mais recente, por isso podemos afirmar que a inserção desses corpos periféricos na ficção seriada foi até então irregular, não a normatividade.
5 A segunda temporada da série Segunda Chamada foi produzida em seis episódios como uma obra original para a Globoplay, uma parceria dos Estúdios Globo com a produtora de audiovisual O2 Filmes e foi disponibilizada em setembro de 2021, indo ao ar na TV aberta quase dois anos depois em agosto de 2023. A primeira temporada estreou na TV aberta em 11 episódios em outubro de 2019.
6 Para Lotman, sistemas modelizantes são aqueles que servem de modelo para a comunicação – tanto para a produção quanto para a tradução de textos culturais.
7 Livre tradução das autoras.
8 Informação consultada em: https://www.terra.com.br/nos/globo-inova-com-criacao-de-setor-de-diversidade,5f4e701544f8d366227cc8b13e02b1e97naj2tqc.html