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Mon, 15 Jan 2024 in Ámbitos
Democracia e ciberativismo: 10 anos depois das Jornadas de Junho de 2013
Resumo
As Jornadas de Junho ocorridas em 2013 no Brasil marcaram profundamente os rumos da política, da democracia e do jornalismo no país. Passados dez anos da onda de manifestações, o cenário que se desenha é de crise democrática, com forte polarização política e impactos diversos no jornalismo profissional. O artigo tem como objetivos apontar as mudanças ocorridas na democracia brasileira no período de 2013-2023; compreender os impactos do neoconservadorismo nos grupos de poder, em especial os radicais de direita; e entender o papel do ativismo digital nas mídias independentes, em contraponto à atuação de veículos hegemônicos. A metodologia se ampara na pesquisa bibliográfica e documental, além de estudos de caso sobre a atuação de dois veículos jornalísticos: Folha de S. Paulo e Mídia Ninja. O primeiro, de caráter hegemônico, mostrou diferentes posicionamentos durante o mês de manifestações; já o segundo, mídia independente e radical, inovou na forma de transmissão dos acontecimentos, com lives realizadas em meio aos protestos. Dentre os resultados, observa-se a centralidade do ciberativismo enquanto instrumento tanto para a ascensão de populismo e do neoconservadorismo como também combustível ao crescimento de outros veículos de mídia independentes. Além disso, observa-se a escalada de princípios antidemocráticos legitimados sobretudo por lideranças autoritárias.
Main Text
1.
Introdução
As Jornadas de Junho de 2013 foram o movimento brasileiro descrito por alguns autores como as rebeliões sociais que demonstraram a indignação social. A mobilização em torno de uma pauta social (redução da tarifa de transporte) se consolida em função da insatisfação popular acerca da política em desenvolvimento no país naquele momento. No terceiro mandato de governos progressistas no poder (2003-2016), a falta de atendimento aos temas relevantes para a população somadas à mobilização de grupos de oposição são os principais motivadores para o início das revoltas que culminaram, em 2016, no impeachment da então presidente Dilma Rousseff.
A partir das Jornadas, o desgaste do governo em atividade passa a ser evidenciado e apoiado pela mídia nacional, entre eles os de grandes grupos hegemônicos, como Folha de S. Paulo. Mas também abre espaço para mídias independentes, como Mídia Ninja, em virtude das estratégias de ciberativismo adotadas por esses veículos. Passados dez anos, a presente pesquisa busca refletir sobre os impactos que as manifestações tiveram na democracia brasileira, a partir do crescimento do radicalismo de direita, na prática jornalística e no ciberativismo.
Os objetivos são: apontar as mudanças ocorridas na democracia brasileira no período de 2013-2023; compreender os impactos do neoconservadorismo nos grupos de poder, em especial os radicais de direita; e entender o papel do ativismo digital nas mídias independentes, em contraponto a atuação de veículos hegemônicos.
Trata-se de uma pesquisa exploratória, com os procedimentos metodológicos de pesquisa bibliográfica e documental para a construção do referencial teórico-metodológico, tendo ainda realizado os estudos de caso na cobertura jornalística a partir de duas abordagens: na Folha de S. Paulo, como veículo hegemônico; e Mídia Ninja, como mídia independente.
O artigo está estruturado em Panorama da virada antidemocrática, em que buscamos resgatar, a partir das primeiras manifestações, os principais fatos que impactaram a política brasileira, em especial aos processos que desencadearam uma crise da democracia — visto, também, como um fenômeno global; em Primavera Ciberativista, discutimos o ciberativismo em sua essência, apontando para os fatores que demonstram que a década que segue (2013-2023) se distinguiu no modo como a população consumiu a mídia e o quanto o jornalismo foi alterado por esses acontecimentos; em Metodologia, apresentamos o percurso metodológico, bem como estudos de caso dos veículos analisados; e, por fim, trazemos os resultados obtidos e discussões que ainda ressoam dentro do cenário apontado.
2.
Panorama da virada antidemocrática
No dia 6 de junho de 2013, cerca de 2 mil pessoas, segundo a Polícia Militar, ocuparam a avenida Paulista, em São Paulo, com o intuito de protestar contra o aumento das tarifas de ônibus, que foram de R$ 3,00 para R$ 3,20. Ainda que não tenha sido a primeira manifestação organizada pelo Movimento Passe Livre (MPL) contra a pauta, essa, em questão, deu início a um mês de seguidas mobilizações de massa nas ruas de diferentes cidades do Brasil.
Singer (2013) entende que a série de manifestações pode ser dividida em três etapas. A primeira fase teve início com uma quantidade pequena de manifestantes — quando comparada às etapas posteriores — com mobilizações na cidade de São Paulo, nos dias 6, 10, 11 e 13 de junho. Os atores eram, em minoria, uma tímida classe média e, em maioria, membros de grupos autonomistas. Dentre eles, o MPL ganhou destaque por ter organizado essas primeiras mobilizações na capital paulista e devido ao empenho de militantes jovens na divulgação e defesa de ideias, tanto na internet quanto nas ruas. Chamou a atenção, além disso, o apartidarismo e a falta de liderança dentro do movimento — ou seja, por meio disso, todos detinham o “mesmo direito à voz e a liderança nata” (Movimento Passe Livre, 2013).
O último dia da primeira fase ficou marcado como o maior em número de participantes até então — com 20 mil manifestantes, de acordo com organizadores — e pela ação violenta da polícia. Não que isso tenha sido algo isolado ao quarto dia da manifestação, pois nos anteriores houve conduta truculenta da polícia, junto ao vandalismo de alguns manifestantes e grupos black blocs, que partilham uma visão anarquista e utilizam a violência como forma de expressão contrária ao capitalismo e aos governos — tendo como marca registrada o uso de capuzes e roupas pretas.
A segunda etapa das manifestações ocorreu entre os dias 17 a 20 de junho. Nessa fase, a pauta da tarifa de ônibus foi englobada a outras reivindicações. Protestos ganharam força, levando centenas de milhares de brasileiros às ruas contra a corrupção e/ou questionando os altos gastos públicos na construção de infraestrutura para a Copa do Mundo de 2014 e Olimpíadas de 2016, ao passo em que precarizações seguiam existindo em importantes setores públicos, como saúde, educação, transporte e segurança. Além de São Paulo, outras capitais, como Rio de Janeiro, Brasília e Belo Horizonte tiveram mobilizações robustas, com milhares de manifestantes.
Ao mesmo tempo em que as manifestações ganhavam força e aceitação dos brasileiros, as figuras representativas do poder viam suas reputações ruírem. De acordo com levantamento do Datafolha, 77 % dos paulistanos apoiavam as manifestações em 18 de junho de 2013 (Datafolha, 2013a, Junho 18). O instituto constatou, ainda, que a então presidente, Dilma Rousseff, obteve queda de 27 pontos percentuais de aprovação, indo de 57 % na primeira semana de junho para 30 % no dia 29 do mesmo mês (Datafolha, 2013b, Junho 27 e 28).
Em 19 de junho, conjuntamente, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), e o prefeito da capital paulista, Fernando Haddad (PT), revogaram o aumento de 20 centavos da tarifa de ônibus. Mesmo assim, as manifestações continuaram nas ruas. No dia 20, a onda de protestos atingiu seu ápice, com 1,5 milhão de participantes em mais de 100 cidades brasileiras. Cartazes e falas exteriorizavam que eles estavam ali “não somente por 20 centavos”.
A terceira e última etapa do movimento vai de 21 de junho até o fim do mês. Nos últimos dias, “o movimento se fragmenta em mobilizações parciais com objetivos específicos” (Singer, 2013, p. 26). Entre tantos, ganhou notoriedade a que exigia a derrubada da PEC 37, que pretendia incluir a apuração de investigações criminais como atividade privativa da polícia judiciária na Constituição brasileira.
Nos dois últimos estágios, as Jornadas apresentaram um “cruzamento de classes e ideologias” (Singer, 2013), no qual tanto a classe média e alta quanto as classes mais baixas integraram a manifestação. O caráter anticorrupção esteve mais presente nos movimentos e grupos de direita e, devido essa bandeira penetrar em diferentes camadas sociais por fluir facilmente pelo senso comum, levou mais gente às ruas. Em contrapartida, a crítica aos altos gastos nas obras para sediar a Copa do Mundo e as Olimpíadas, junto à aguda precarização dos serviços públicos mostraram um viés popular. Era comum ver trabalhadores dizendo serem “contra o aumento do custo de vida e contra o preço da Copa do Mundo, que é paga pelos trabalhadores” (Singer, 2013, p. 36).
O Partido dos Trabalhadores (PT), historicamente vinculado à esquerda, passa a perder o espaço das ruas como ambiente de reivindicações, em decorrência da escalada de manifestantes autointitulados como “apolíticos”, opositores (incluindo simpatizantes da direita radical) e até mesmo ex-petistas1
, descontentes com a atuação do partido em certas pautas (Alonso, 2023). Nesse momento o PT já era marcado pelo Mensalão2
, que em 2012 e 2013 passou por investigações severas. Lula e Dilma tornaram-se figuras abominadas nas manifestações. As camadas populares também mostravam-se contrárias à condução dos dois por entenderem que o governo de origem reformista e atrelado ao movimento sindical havia sido fagocitado pela elite política distante das demandas dos trabalhadores (Singer, 2013).
Rocha (2023) destaca que, dentro dos opositores, a nova direita apresentava uma forma inédita de atuação: “lideranças novas, discursos novos e, por último, estratégias novas”. Em outras palavras, as “direitas emergentes passaram a usar a linguagem das redes sociais do mundo digital de uma forma vanguardista, inovadora, etc. que a direita tradicional nunca pensou em fazer” (Rocha, 2023).
Após junho de 2013, esse modus operandi até então inédito — organizado digitalmente e em rede, com linguagem fácil e acessível — destaca-se e ganha notabilidade nas mídias e nas coberturas da Operação Lava Jato3
, em 2014; no impeachment de Dilma, em 2016; e na prisão do ex-presidente Lula, no início de 2018. Dessa forma, outras figuras políticas ganharam popularidade, ameaçando a reeleição de Dilma em 2014 e a estabilidade do governo federal. Nenhum ator, entretanto, teve o efeito de Jair Bolsonaro na eleição seguinte. O então deputado federal pelo Partido Progressista (PP), em outubro de 2018, concorreu à presidência e venceu Haddad por quase 18 milhões de votos (Tribunal Superior Eleitoral, 2018).
2.1.
O populismo autoritário na escalada de Bolsonaro
O apontamento dos fatores que levaram Bolsonaro ao poder, a maneira de atuação enquanto governante e o perfil detalhado da configuração de classes e ideologias de modo qualitativo daquilo que ficou conhecido como bolsonarismo é um tema bastante complexo e ainda com estudos em curso no Brasil. É importante ressaltar, no entanto, o contexto em que Bolsonaro passou a se tornar influente a ponto de concorrer a uma eleição presidencial.
Entre 2014 e 2017 o Brasil enfrentou um período de recessão econômica alarmante (Ministério da Fazenda, 2018). O PIB recuou durante 11 trimestres seguidos, durante 2014 e 2016; no mesmo período, o PIB per capita recuou 9,3 % (IBGE, 2023a). A inflação atingiu dois dígitos entre novembro de 2015 e fevereiro de 2016. Devido à deterioração fiscal, a dívida pública saltou de 54 % do PIB em 2014 para 70 % em 2016. No primeiro trimestre de 2017, o desemprego atingiu 14,3 milhões de brasileiros, o equivalente a uma taxa de 13,9 % e, do primeiro trimestre de 2016 ao segundo de 2022, o desemprego abalou mais de 10 milhões de indivíduos (IBGE, 2023b).
Conjuntamente, o Petrolão4
era investigado pela Operação Lava Jato e a cada fase novos políticos e partidos eram descobertos como envolvidos nesse amplo esquema de corrupção. Em 31 de agosto de 2016, após julgamentos na Câmara e no Senado, Dilma teve seu mandato formalmente cassado e sofreu impeachment. Durante votação na Câmara, Bolsonaro, na época deputado federal, votou, fez um breve apelo e deu um prognóstico de sua ideologia: defendeu o regime militar iniciado em 1964, as forças armadas, a liberdade, a família, mostrou-se contra o comunismo e saudou Carlos Alberto Brilhante Ustra — ex-coronel, um dos mais violentos torturadores da ditadura brasileira, responsável, inclusive, por violentar Dilma quando ela era jovem (Estadão, 2019).
Os elementos enfrentados no país, somados, mostram-se um terreno fértil para a ascensão de lideranças personalistas, além de ideologias autoritárias, e, ainda que de maneira não tão explícita, antidemocráticas (Castells, 2018; Levitsky & Ziblatt, 2018; Mounk, 2019). A figura de Bolsonaro uniu a retórica antiestablishment a um populismo disfarçado, apregoando para si o sentido da democracia (Mounk, 2019), diante de uma elite política — por ele taxada — como corrupta, obsoleta e comprometida com seus interesses particulares (Levitsky & Ziblatt, 2018). Para tal, resgatou discursos nacionalistas e tradicionalistas, como proteção diante da caótica conjuntura instaurada por adversários perversos (Alexander, 2018). Ou seja, a corrupção ganha sentido tanto como um mal próprio do Estado quanto algo que ataca a moralidade e os costumes.
Um movimento importante para a concretização dessa ideologia é transformar a política em algo ufanista e de apelo emocional, que, consequentemente, desperte a noção de pertencimento por meio das pautas defendidas e do seu ativismo. É notório, assim, a propagação da dicotomia “nós” contra “eles”, em que há cooperação entre os iguais e repugnância aos divergentes (Alexander, 2018).
2.2.
A democracia em xeque: uma questão global
A última década (2013-2023) mostra a proeminência do populismo autoritário em diversos países. Muitos deles, inclusive, possuíam sólidas formações democráticas em suas estruturas políticas e institucionais (Mounk, 2019, p. 16). Descaradamente, líderes desse viés atentam contra os sistemas eleitorais, apresentam discursos nacionalistas e chauvinistas, freiam a entrada de refugiados, refutam posicionamentos divergentes sob a égide de que representam uma ameaça à estabilidade interna e um perigo à nação, perseguem a imprensa e mostram ojeriza a grupos minoritários — no Brasil marcados pelos fatores raça, classe, renda e gênero.
Castells (2018) entende que as democracias contemporâneas enfrentam o que ele define como uma “crise de legitimidade”. Esse fenômeno é decorrente de um afastamento entre representantes e representados — entre aqueles que ocupam posições de representação no poder político institucional e os que votam e decidem quais figuras irão representá-los durante os anos de mandato; também pode ser visto como um cenário de ruptura entre o Estado-nação e a nação.
Essa assimetria, portanto, faz com que seja desenvolvida uma relação de superiores e inferiores. E, nesse sentido, essa classe política passa a se dedicar à preservação dos próprios interesses e das figuras atuantes nesse exercício, formando um oligopólio em que, inclusive, descartam-se os compromissos ideológicos, se preciso.
A crise de legitimidade se mostra ainda mais agressiva aos regimes democráticos quando, concomitantemente, outras crises — de ordens política, econômica, de segurança pública, institucional e ambiental — se desenvolvem. Em condições turbulentas como essas, é materializada a fragilidade do distanciamento entre representantes e representados, gerando um mal-estar pautado pela descrença e indignação.
No entanto, a raiz desencadeadora dessas crises e do mal-estar atua em âmbito profundo. A globalização, processo em que a vida social é continuamente afetada pela internacionalização de praticamente tudo — de relações políticas e econômicas à moda — exige que governos nacionais lidem com problemas e limitações que são globais em sua origem, indo além de ações voltadas à política interna (Castells, 2018; Johnson, 1997). Exemplos dessa natureza são crises financeiras que acometem toda uma cadeia de comercialização e relacionamentos econômicos, como a de 2008, violações dos direitos humanos, a questão climática e ambiental (Castells, 2018) e, mais recentemente, a crise sanitária decorrente da pandemia da covid-19.
É diante desse panorama que movimentos sociais e políticos em diversos países ganharam proeminência durante a década de 2010 e no início da seguinte. Em comum, todas elas expressam a inquietude de milhares — no Brasil, milhões — de cidadãos desconfiados com o papel e atuação do Estado, o que demonstra a necessidade de uma maior compreensão acerca de tais manifestações organizadas na Internet — e materializadas nas ruas.
3.
Primavera ciberativista
O papel dos movimentos sociais, como parte intrínseca de sociedades democráticas, é trazer à tona demandas coletivas. “São fontes de inovação e matrizes geradoras de saberes” (Gohn, 2011, p. 333). É por meio de movimentos sociais que, muitas vezes, determinadas temáticas são pautadas em campos distintos de debate público, sejam tradicionais e consolidados, como o poder legislativo local, ou emergentes e desestruturados, como as redes sociais digitais. De toda maneira, movimentos sociais, com suas pautas específicas, como o MPL, são capazes de incluí-las na esfera pública, sendo então amplificadas, num segundo momento, na imprensa e por outros atores de grande repercussão, como os influenciadores digitais.
Peruzzo (2013, p. 76) afirma que, além da demanda coletiva, movimentos sociais são caracterizados por uma “consistência dos laços, identidades compartilhadas, certa durabilidade e clareza não só no uso de táticas (mobilizadoras, comunicativas, civis, judiciais etc.), mas também nas estratégias”. Além disso, são permanentes e contínuos, sendo movidos não apenas por pautas pontuais, de forma reativa; mas sim, suas pautas ressignificam ideais universais, como a liberdade, igualdade e fraternidade. Para tal, realizam parcerias com entidades da sociedade civil e política, tendo o poder de tematizar a esfera pública, determinar um certo controle social e construir alternativas inovadoras de modelos sociais (Gohn, 2011).
Pode-se inferir, assim, que movimentos sociais, em geral, são ativistas, ou seja, exigem uma maior participação do cidadão para com assuntos de ordem pública. “Ativistas são aqueles que participam da vida pública para além dos momentos eleitorais. Aqueles que se identificam com um movimento social, que se envolvem com as suas causas e que os apoiam efetivamente.” (Mansbridge, 1990, p. 229).
Todo ativismo, entretanto, estaria atrelado necessariamente a um movimento social? A pergunta se faz importante devido ao fato de que, durante as Jornadas de Junho de 2013 no Brasil, realmente iniciadas a partir da pauta de um movimento social — o MPL — houve uma apropriação, num segundo momento, de grupos diversos, com pautas igualmente distintas, como o combate à corrupção e descontentamentos com o investimento em infraestrutura para eventos esportivos mundiais, entre outros. A pulverização do tema inicial — o aumento da tarifa de transporte público — indica que os protestos foram protagonizados também por grupos ativistas, que reuniram manifestantes "volantes", ou seja, simpatizantes que momentaneamente conectaram-se para apoiar os protestos, além de black blocs.
A união de indivíduos não pertencentes a movimentos sociais para protestar, de forma ocasional e segundo demandas próprias, assim como a de pessoas pertencentes a movimentos sociais, fora possível, por sua vez, devido ao ecossistema de mídias instaurado já no início da década passada — no qual mídias tradicionais e interativas coexistem de forma a acentuar a midiatização da sociedade (Braga, 2006; Sodré, 2002; Hjarvard, 2012).
Assim, a adoção em massa de redes sociais por usuários do mundo todo são fatores que estabeleceram um paradigma até então inédito aos movimentos sociais e também aos ativistas: o da organização digital e em rede, praticamente sem limites geográficos, de maneira automatizada e, se preciso, em tempo real, de ações que publicizam problemáticas e necessidades. O protagonismo nas redes é um dos pilares para o chamado ciberativismo: “ações continuadas, realizadas com a internet ou, exclusivamente, via internet, visando aos objetivos específicos ou uma transformação geral da realidade” (Becker, 2010, p. 175).
No decorrer da História, os movimentos sociais foram “produtores de novos valores objetivos em torno dos quais as instituições da sociedade se transformaram a fim de representar esses valores criando novas normas para organizar a vida social” (Castells, 2013, p. 14), tendo, assim, papel importantíssimo para transformações do status quo. Sob este ponto de vista, naquele início de década (meados de 2010), o ciberativismo parecia realmente a promessa de mudanças importantes, oriundas da população, que figurariam como novas configurações concretas no tecido social — como a deposição de ditadores e a participação ativa da sociedade em decisões cotidianas.
Ações ativistas descentralizadas que emergiram em rede a partir deste período, cuja concretização ocorre em espaços públicos, foram o ponto de partida para diferentes acontecimentos que mudariam o rumo de países como o Brasil, Tunísia, Síria, Egito, entre outras nações árabes, em episódios conhecidos atualmente como Jornadas de Junho (no Brasil) e Primavera Árabe. Nos Estados Unidos e na Espanha, protestos e ocupações mostrariam uma nova fase das ações ativistas, batizados como Occupy Wall Street e Os Indignados da Espanha. No decorrer da década passada, diversos outros movimentos foram acumulando-se, como a chamada Primavera Feminista, em 2015 no Brasil, trazendo debates importantes — de grupos minorizados em muitos casos — a um público mais amplo e, em algumas ocasiões, global — gerando expectativa e esperança de uma democracia mais participativa e horizontal (Castells, 2013).
Não apenas organizadas em rede, as ações ciberativistas são também registradas e mundialmente disseminadas pelos usuários em plataformas como o YouTube, apps de conversação como o Whatsapp e Telegram, e em redes sociais on-line como Facebook e Instagram. O acesso a dispositivos móveis, em especial, a smartphones, é outro elemento de cariz tecnológico essencial: permite a comunicação ubíqua e a transmissão de imagens, vídeos e informações em tempo real, sendo assim estratégicos em manifestações coletivas.
Marcada pelo ciberativismo, a década de 2010 é o espaço temporal em que a autocomunicação de massa (Castells, 2013) torna-se, aos poucos, o novo paradigma comunicacional, garantindo a multiplicidade de vozes e pautas em ambientes públicos de discussão, em grande parte, virtuais. Este novo paradigma de consumo e produção de conteúdos midiáticos provoca transformações que ecoam nos processos produtivos do jornalismo. Durante as Jornadas de Junho de 2013, o jornalismo produzido pelos veículos tradicionais foi inundado pelas manifestações de rua em suas pautas. Contudo, a atuação de grandes veículos de mídia diferenciou-se, em termos de formato e conteúdo, da cobertura realizada por instituições jornalísticas independentes, como a Mídia Ninja, que ganha destaque devido ao posicionamento imersivo e ciberativista dos seus representantes em meio aos manifestantes — com a utilização de ferramentas de redes sociais on-line para a transmissão em tempo real dos acontecimentos.
Sendo assim, dez anos após as Jornadas de Junho, é possível compreender, com olhar distanciado, como o jornalismo retratou as manifestações — tanto em relação à mídia tradicional quanto aos veículos emergentes, algo que será melhor esmiuçado nos estudos de caso sobre a Folha de S. Paulo e a Mídia Ninja, veículos cuja cobertura dos protestos fora bastante distinta em termos de técnica e de posicionamento editorial.
4.
Metodologia
O método utilizado foi a pesquisa exploratória, com os procedimentos de pesquisa bibliográfica e documental, com os seguintes macro-descritores: Jornadas de Junho, democracia, ciberativismo e transformações no jornalismo. A partir destes marcadores, fizemos o levantamento de obras que pudessem contribuir com a discussão proposta, considerando o período de 2013 a 2023.
De modo complementar, fizemos o estudo de caso de dois veículos jornalísticos que tiveram forte atuação durante as manifestações ocorridas em junho de 2013: o jornal Folha de S. Paulo, um veículo tradicional brasileiro, com 102 anos de existência e que teve um papel fundamental nos desdobramentos políticos que seguiram após as jornadas; e a iniciativa jornalística independente e radical, Mídia Ninja, um coletivo de profissionais espalhados pelo Brasil, que passaram a atuar para trazer coberturas jornalísticas de maior engajamento com a população nas plataformas de mídia digital, como as redes sociais on-line e o YouTube.
Em ambos veículos, o estudo de caso se ateve às publicações ocorridas entre o período de 07 de junho de 2013, momento em que as manifestações eclodem, até 30 de junho, ponto em que o impacto da cobertura midiática é percebido nas pesquisas de opinião pública.
Devido à natureza distinta de ambos os veículos — um jornal impresso de grande circulação no Brasil e uma iniciativa de jornalismo digital ciberativista que surge no bojo dos protestos de 2013 —, há diferenças significativas em relação à periodicidade de publicações da Folha e do Mídia Ninja. Enquanto foi possível resgatar, por meio de buscas no próprio acervo digital da Folha de S. Paulo, as edições impressas no período selecionado, no caso da Mídia Ninja, muitas transmissões on-line se perderam nessa última década. Há vídeos alocados no YouTube e em documentários sobre as Jornadas de Junho. No entanto, muitas das lives, até mesmo devido à incapacidade de armazenamento das redes sociais naquele momento (2013) não ficaram gravadas.
Assim, se reconhece que há uma assimetria nos dados obtidos via pesquisa documental para os estudos de caso, principalmente relacionados à disparidade entre reportagens resgatadas. Vale ressaltar, no entanto, que o intuito do estudo de caso não é a comparação entre os veículos uma vez que parte-se do pressuposto de que ambos são opostos em relação à produção de notícias. Dessa forma, intenciona-se traçar, para cada veículo estudado, os principais pontos que deram o tom à cobertura jornalística, em termos de aparato técnico e posicionamento em relação ao fato. Acredita-se que, a seguir, se oferece uma perspectiva, contendo os pontos principais da cobertura de cada veículo.
4.1.
De baderneiros a vitoriosos: a cobertura da Folha sobre as Jornadas de Junho de 2013
O jornal Folha de S. Paulo, fundado em fevereiro de 1921 e um dos principais veículos hegemônicos do país, foi alvo de nosso estudo de caso acerca da cobertura jornalística das Jornadas de Junho de 2013 pela grande imprensa. Nesta observação focamos em textos de gêneros informativo, ou seja, 118 notícias, 52 reportagens, 14 notas e sete entrevistas, e opinativo em cinco editoriais que trataram do tema e dois ombudsmans. Para esse exercício, consultamos o acervo digital da Folha de S. Paulo e nos baseamos em jornais publicados entre 7 de junho, dia seguinte ao primeiro protesto realizado pelo MPL, e 30 de junho.
De uma maneira geral, foi possível notar que a cobertura do jornal sobre o acontecimento tornou-se mais robusta à medida que as manifestações ganharam proeminência nas decisões e mobilizações políticas e sociais no Brasil. Em uma comparação simples, na edição do dia 12 de junho, momento em que três mobilizações haviam ocorrido, o tema foi abordado na capa, por meio de uma foto de manifestantes formando barricadas, outra de um policial em combate e a última de um ônibus em chamas. No entanto, as Jornadas só voltaram a ser pautadas na seção “Cotidiano”, ocupando quase quatro páginas — pois divide o espaço de uma notícia com um anúncio grande — das 12 páginas em questão. Já na edição de 19 de junho, após maior estruturação das manifestações, elas estamparam todas as fotos da capa e foram tratadas em sete de 12 matérias desse espaço, sendo tema do editorial (“Incógnita das ruas”) e ocupando nove das 11 páginas do “Cotidiano”.
Em dias distintos, as Jornadas, seus efeitos e elementos passaram a fazer parte de outras seções. Na edição de 16 de junho, por exemplo, em “Folha na Copa” há uma matéria sobre protestos que ocorreram do lado de fora do estádio Mané Garrincha em Brasília, palco da estreia da Seleção Brasileira na Copa das Confederações, marcando embates entre policiais e manifestantes (Falcão, Leitão & Mello, 2013). Na edição seguinte, de 17 de junho, uma reportagem que relacionou a onda de protestos, a violência e os atos de vandalismo em São Paulo ao aumento da audiência de jornais policiais televisivos de teor sensacionalista integrou a seção “Ilustrada”, voltada, tradicionalmente, a temas relacionados à cultura, arte e reflexões da atualidade (Kachani, 2013).
Do ponto de vista institucional, é possível notar uma mudança no tom da Folha acerca do tema por meio de seus editoriais. Em um primeiro momento, no editorial “Retomar a Paulista”, publicado em 13 de junho, o veículo evidencia seu posicionamento contra as ações do MPL, principalmente no que diz respeito a duas consequências diretas para a cidade: o vandalismo/violência, que depreda espaços públicos e privados, e o fechamento de vias importantes da cidade, bloqueando a circulação de outras pessoas e veículos indiretamente afetados pelos protestos (Folha de S. Paulo, 2013a).
O texto é iniciado com a exposição de danos materiais e humanos das ações do grupo e do decorrente embate com a polícia, sendo manifestantes e policiais feridos, 87 ônibus depredados e R$ 100 mil de prejuízo às estações. Palavras ácidas, inclusive, são utilizadas para se referir ao grupo de manifestantes, como “grupelho” e “jovens predispostos à violência por uma ideologia pseudorrevolucionária”, além de defender que “os poucos manifestantes que parecem ter algo na cabeça além de capuzes justificam a violência como reação à suposta brutalidade da polícia” (Folha de S. Paulo, 2013a). Ao fim, defende-se a necessidade da Polícia Militar e a Prefeitura atuarem na contenção desses danos, além de entender que investigar e punir os responsáveis pelo vandalismo, valendo-se da lei, era a medida mais legítima.
Posteriormente, quando mais pessoas passaram a ir aos protestos, o veículo interpretou que a Polícia Militar de São Paulo passou a agir de maneira truculenta, promovendo táticas violentas sobre grupos e pessoas que apenas demonstravam insatisfação. A Folha se posiciona veemente contra essa ação quando Giuliana Vallone, repórter da instituição, foi atingida no olho por uma bala de borracha disparada por um policial. O editorial “Agentes do caos”, publicado em 15 de junho, é iniciado com o período: “A Polícia Militar do Estado de São Paulo protagonizou, na noite de anteontem, um espetáculo de despreparo, truculência e falta de controle ainda mais grave que o vandalismo e a violência dos manifestantes, que tinha por missão coibir” (Folha de S. Paulo, 2013b).
Em ombudsman de 16 de junho, é reconhecido que no editorial do dia 13 de junho o veículo falhou ao generalizar os manifestantes, classificando-os como baderneiros e vândalos. Também é explorado que a Folha mudou sua abordagem em “Agentes do caos”, deslocando a responsabilidade da prática da violência à polícia. Nos editoriais seguintes — “Protestos e vaias” (Folha de S. Paulo, 2013c), “Incógnita nas ruas” (Folha de S. Paulo, 2013d) e “Vitória das ruas” (Folha de S. Paulo, 2013e) — percebe-se que o veículo começa a destacar a proporção que as manifestações atingiram, prevalecendo a diversidade de indivíduos nas ruas, que passaram a ser o palco de verbalização dos descontentamentos generalizados.
Em “Incógnita nas ruas”, editorial do dia 19, reconhece os descontentamentos com os gastos públicos e a alta da inflação, mas ainda enxerga algumas exigências como sendo ambíguas: “De fato, eram muitas as bandeiras: de críticas aos gastos com a Copa à defesa de investigações pelo Ministério Público, passando por vagos pedidos por ‘mais direitos’” (Folha de S. Paulo, 2013d). Dessa forma, a Folha esteve longe de adotar uma postura de ativismo no contexto das Jornadas de Junho. Se em um primeiro momento posicionou-se radicalmente contra a ação violenta dos manifestantes, no segundo demonstrou ser contrária à postura das forças policiais que utilizaram a violência como modo de contenção e priorizou um olhar mais analítico para os grupos que frequentaram as ruas durante os protestos. Assim, o veículo não esteve abertamente ao lado dos manifestantes.
4.2.
Transmissões em tempo real, do lado do povo: nasce a Mídia Ninja
Enquanto veículos da grande mídia, como a Folha de S. Paulo, realizavam a cobertura tradicional dos protestos em junho de 2013, a Mídia Ninja despontou com uma transmissão diferenciada dos acontecimentos, principalmente devido ao caráter imersivo dos seus colaboradores, que se posicionaram internamente às manifestações e, com apoio de celulares conectados à Internet, disseminaram vídeos e fotografias em tempo real sobre o que ocorria nas ruas do país. Neste estudo de caso, foram resgatados do YouTube oficial da Mídia Ninja 12 vídeos realizados durante os protestos de 2013, além de serem observadas imagens fotográficas e postagens no perfil oficial do veículo no Facebook, entre o período de 7 e 30 de junho.
Autodenominados como um coletivo de jornalistas, a Mídia Ninja carrega no nome seu propósito: ser uma alternativa de jornalismo independente e ativista. “Ninja” é o acrônimo de Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação. A iniciativa surge a partir de um coletivo criado em 2005, o Circuito Fora do Eixo, cujo objetivo é fomentar ações culturais para além de Rio de Janeiro e São Paulo, estados brasileiros de maior concentração de apresentações culturais (música, teatro, cinema, literatura, etc.) e, consequentemente, de capital investido no setor.
Com o apoio de jornalistas, produtores audiovisuais e fotógrafos que faziam parte do Fora do Eixo, a Mídia Ninja pôde cobrir as manifestações de junho de 2013 em praticamente todo o território nacional, algo muito difícil de ser realizado por veículos de comunicação tradicionais, mesmo para as grandes redes de televisão que possuem afiliadas espalhadas pelo país, quinto maior do mundo em termos de território.
Dessa forma, enquanto a mídia tradicional cobriu os acontecimentos de maneira habitual, com uma certa distância das ocorrências, além de estar atrelada a amarras como deadline e o formato noticioso (principalmente nota, notícia e reportagem), a Mídia Ninja ofereceu uma cobertura feita no nível da rua, em tempo real e sem cortes, aos usuários de Internet.
A cobertura das manifestações em questão exigiu, dos repórteres do veículo, manejar recursos técnicos presentes em redes sociais — como o Facebook — e plataformas de streaming, como o YouTube. O uso de tais canais, à época, ainda não era comum para a realização de transmissões ao vivo pela imprensa tradicional em geral — o que significou, aos usuários, a possibilidade do acesso aos protestos de forma mais “crua”, sem edições.
Por estarem literalmente no meio dos protestos, as imagens feitas pela Mídia Ninja — estáticas e em movimento, e sem a presença de uma equipe maior (como por exemplo, fotógrafo e/ou cinegrafistas) — foram percebidas como mais “reais” por boa parte dos usuários, num contexto em que as manifestações também criticavam veículos de mídia tradicionais, como a Rede Globo de Televisão e a própria Folha de S. Paulo, por supostas linhas editoriais enviesadas.
Abertamente ativistas, os vídeos analisados trazem momentos nos quais repórteres do Mídia Ninja interagem com a polícia militar, em tom de provocação e enfrentamento. No vídeo “Ninja dança e esquiva de bombas na Av. Paulista durante protestos” (Mídia Ninja, 2013), imagens de vídeo trêmulas mostram um repórter diante de policiais, em coreografia que faz alusão à era da disco music dos anos 1970. O vídeo foi editado com a música Stayin' Alive, do grupo Bee Gees, e descrito como “perfomance criativa” pelo canal. O mesmo tom desafiador e transgressor aparece nas imagens observadas no Facebook.
Espalhados em meio ao turbilhão de pessoas, os repórteres da Ninja passaram majoritariamente incólumes5
, cujo resultado pôde ser conferido nas imagens exclusivas produzidas. O conteúdo, muito mais impactante do que as imagens produzidas de longe, foi inclusive utilizado pela mídia tradicional. Um dos exemplos é a veiculação de vídeos feitos pela Mídia Ninja no maior telejornal do país, o Jornal Nacional, da Rede Globo.
Realizadas com o celular, vídeos e fotografias não priorizavam a qualidade técnica e estética, mas sim o flagrante dos acontecimentos na ótica mais próxima possível dos mesmos. A precariedade no formato das imagens foi ignorada em redes de TV, algo que acaba se tornando mais corriqueiro com o passar dos anos: o uso de vídeos e fotografias produzidos por pessoas comuns que, apesar de tremidas ou desfocadas, são importantes à compreensão do fato.
Ao passo em que as imagens exclusivas e a cobertura no nível da rua ganham proporção significativa, surgem críticas contundentes à Mídia Ninja, ao ponto de editoriais em grandes jornais, como O Estado de S. Paulo, se referirem às suas produções como “antijornalismo” (Silvestre, 2013). Em tais críticas, o foco era a parcialidade da cobertura dos protestos — os repórteres da Ninja realizavam entrevistas específicas apenas com os manifestantes, sem ouvir outros atores sociais envolvidos (como a própria polícia) — e a citada precariedade de imagens e transmissões, devido aos aparatos simples utilizados.
Atualmente, a Mídia Ninja tem 4,6 milhões de seguidores no Instagram e 684 mil inscritos em seu canal oficial no YouTube6
. Realiza coberturas factuais de temáticas contemporâneas, além de análises e jornalismo de opinião. Produz em diferentes formatos, como o digital e o audiovisual. É claramente alinhada ao espectro político de esquerda e faz parte do Facción (Rede Latinoamericana de Midiativismo). Em 2017, suas transmissões ao vivo dos protestos de junho de 2013, entre outros conteúdos, foram incorporadas à coleção contemporânea do Instituto Moreira Salles, por representarem um dos mais importantes registros dos conflitos históricos e sociais do país, segundo descrito no site da instituição.
5.
Discussão e conclusões
A partir do apontamento das transformações na política brasileira, no período que decorre entre 2013-2023, e dos dados e questões levantadas neste artigo, é possível empreender que a ascensão de movimentos radicais de direita se deu em consequência de alguns fatores decorrentes de governos progressistas anteriores, liderados pelo Partido dos Trabalhadores (PT) (2003-2016), como: os esquemas de corrupção, a precarização de setores públicos, os altos gastos para a construção da infraestrutura utilizada na Copa do Mundo de 2014 e nos Jogos Olímpicos de 2016 e a recessão econômica.
Nesse ambiente de insatisfação generalizada, Jair Bolsonaro angariou votos e a confiança de parte dos brasileiros, aproveitando esses elementos a fim de construir uma retórica antiestablishment, acusando o Estado de ser a instituição de poder que separa a elite política do povo, tendo a corrupção como marca inerente, e de uma conduta baseada na polarização “nós” contra “eles” — em que, nessa estratégia, os primeiros são encarregados de assegurar a estabilidade moral da nação, ao passo em que os segundos corrompem esse estado através da alteração dos costumes.
Como fora demonstrado, vivencia-se uma crise de legitimidade generalizada nos regimes democráticos — algo que insufla discursos radicais e abre espaço para populismos e autoritarismos, arranhando a confiabilidade dos indivíduos em relação aos governantes (Castells, 2018), bem como ao jornalismo. Vale ressaltar que, na atualidade, apenas 43 % das pessoas confiam em informações jornalísticas no Brasil — em 2015, o índice era de 62 % (Reuters Institute, 2023).
Em relação aos veículos abordados neste trabalho, apesar da impossibilidade de se catalogar em searas semelhantes e de mesma periodicidade, as produções de Folha de S. Paulo e Mídia Ninja durante as Jornadas de Junho apresentaram pontos comuns e divergentes. Dentre as similaridades, está o impacto da cobertura jornalística, mesmo que distinta em forma e conteúdo, na opinião pública, seja por um público menos militante consumidor da Folha de S. Paulo, como também no caso de usuários de mídias progressistas e de esquerda, que se sentiram mais próximos de uma cobertura sem edições e claramente posicionada em favor de manifestantes que buscavam transformações sociais, com as ações jornalísticas e ciberativistas da Mídia Ninja.
Por outro lado, as diferenças mais perceptíveis na cobertura foram o aparente emprego da imparcialidade por uma equipe mais apegada aos padrões e elementos clássicos da cobertura jornalística, como é possível observar no estudo de caso da Folha de S. Paulo. Além disso, o veículo, enquanto instituição, mudou seu posicionamento em relação aos atores envolvidos nas Jornadas — especialmente, polícia e manifestantes —, sem atuar de forma ativista. De maneira oposta, diante de uma cobertura com menor estrutura e equipamentos amadores, sendo realizada no epicentro das manifestações, à paisana e disruptivamente, na Mídia Ninja o conteúdo produzido foi pautado de acordo com o ativismo dos repórteres, que abertamente se posicionaram ao lado dos manifestantes nos protestos.
Dez anos após o “junho que não acabou”, houve a retomada, no Brasil, por vias democráticas, de um governo alinhado aos ideais progressistas e com a promessa de enfoque em melhorias sociais. Não sem muito barulho e ataques constantes às instituições democráticas. Logo no segundo domingo após a posse oficial de Luiz Inácio Lula da Silva, houve violentos ataques a prédios e patrimônios públicos em Brasília, capital do país, numa tentativa de golpe de estado. As ações, orquestradas em redes digitais, tiveram financiamento de terceiros e resultaram em centenas de pessoas presas. As coberturas jornalísticas, inauguradas no “nível da rua” pela Mídia Ninja em 2013, foram desta vez mais exploradas pela mídia tradicional, com repórteres equipados com smartphones ou kits de câmera e microfones portáteis, bateria e estabilizador de movimento.
O desafio que se desenha a partir deste cenário, tanto para o jornalismo quanto para o ciberativismo, é criar mecanismos de defesa e manutenção da democracia frente à escalada crescente do autoritarismo no Brasil. A valorização da ética e dos critérios jornalísticos que auxiliem a credibilidade e a veracidade dos fatos é outro ponto importante a ser considerado na constituição de sistemas midiáticos alinhados aos ideais democráticos.
Resumo
Main Text
1.
Introdução
2.
Panorama da virada antidemocrática
2.1.
O populismo autoritário na escalada de Bolsonaro
2.2.
A democracia em xeque: uma questão global
3.
Primavera ciberativista
4.
Metodologia
4.1.
De baderneiros a vitoriosos: a cobertura da Folha sobre as Jornadas de Junho de 2013
4.2.
Transmissões em tempo real, do lado do povo: nasce a Mídia Ninja
5.
Discussão e conclusões