Nº 65 | VERANO 2024 ISSN: 1139-1979 | E-ISSN: 1988-5733 pp. 90-110 |
Samara Wobeto
Universidade Federal de Santa Maria | Avenida Roraima, 1000, 97105-900 Santa Maria, RS | Brasil
0009-0000-4812-3649 | samara.wobeto@acad.ufsm.br
Viviane Borelli
Universidade Federal de Santa Maria | Avenida Roraima, 1000, 97105-900 Santa Maria, RS | Brasil
0000-0003-0643-2173 | viviane.borelli@ufsm.br
Luan Moraes Romero
Universidade Federal de Santa Maria | Avenida Roraima, 1000, 97105-900 Santa Maria, RS | Brasil
0000-0003-4495-6672 | luan.romero@acad.ufsm.br
Recepción 27/02/2024 · Aceptación 29/04/2024 · Publicación 15/07/2024
Resumo
Este artigo faz parte de uma pesquisa maior desenvolvida como requisito para conclusão do curso de Jornalismo, que objetivou a construção de uma ferramenta de indicadores de qualidade para a acessibilidade comunicativa no jornalismo. A discussão teórica se centra nos entrelaçamentos entre o jornalismo, a democracia e a cidadania em sua relação com a temática. São argumentos centrais a ausência de acessibilidade nas práticas jornalísticas, o que a torna uma lacuna, e as formas estigmatizadas de representação dos públicos com deficiência. O desconhecimento de jornalistas acerca das tecnologias assistivas e formas de acessibilizar também é parte do problema. Argumenta-se que não é possível ter um jornalismo verdadeiramente democrático e cidadão sem acessibilidade comunicativa. Para atingir o objetivo do artigo, usa-se a revisão bibliográfica (Barrichello, 2016) para delimitar campos teóricos e normativos. Os últimos são guias, legislações e orientações de acessibilidade para a comunicação tanto em nível nacional quanto internacional, que permitem, junto às teorias do jornalismo e da acessibilidade, estabelecer critérios para a construção dos indicadores. Com os mesmos redigidos, eles são testados nos sites de dois veículos jornalísticos, com entrevistas semi-abertas (Gil, 2008) de usabilidade com pessoas com deficiência, e outras com os editores dos veículos analisados. Conclui-se que a acessibilidade não é prioridade destes veículos jornalísticos, o que se evidencia pela baixa pontuação e pelos registros de ausências de tecnologias assistivas, da cultura jornalística que não prioriza valores de acessibilidade e do desconhecimento das melhores formas de incorporar a mesma em uma rotina produtiva.
Palavras-chave: acessibilidade comunicativa, jornalismo, democracia, cidadania, indicadores de qualidade.
Abstract
This article is part of a larger research project developed as a requirement for the completion of the Journalism course, which aimed to build a tool of quality indicators for communicative accessibility in journalism. The theoretical discussion focuses on the intertwining of journalism, democracy and citizenship in relation to the theme. Central arguments are the absence of accessibility in journalistic practices, which makes it a gap, and the stigmatized forms of representation of audiences with disabilities. Journalists’ lack of knowledge about assistive technologies and how to make them accessible is also part of the problem. It is argued that it is not possible to have truly democratic and citizen journalism without communicative accessibility. To achieve the aim of the article, a literature review (Barrichello, 2016) was used to delimit theoretical and normative fields. The latter are guides, legislation and accessibility guidelines for communication at both national and international level, which, together with theories of journalism and accessibility, allow us to establish criteria for the construction of indicators. Once these were drafted, they were tested on the websites of two news outlets, with semi-open interviews (Gil, 2008) on usability with people with disabilities, and others with the editors of the outlets analyzed. The conclusion is that accessibility is not a priority for these news outlets, as evidenced by the low scores and records of the absence of assistive technologies, the journalistic culture that does not prioritize accessibility values and the lack of knowledge of the best ways to incorporate it into a production routine.
Keywords: communicative accessibility, journalism; democracy, citizenship, quality indicators.
A acessibilidade comunicativa na prática jornalística, hoje, representa uma lacuna. São várias as pesquisas que apontam ausência de tecnologias assistivas em produtos jornalísticos (González-Perea, 2018; Beraldo, 2021; González-Perea & Rodríguez-Ascaso, 2022; Barbosa, 2023) e estigmatização dos públicos com deficiência em notícias, reportagens e outros formatos (Freitas, 2021; Gomes & Moutinho, 2021). Além disso, a inserção da acessibilidade em veículos jornalísticos e nas rotinas produtivas é apontada como necessidade por pesquisas da área da Comunicação e do Jornalismo já há algum tempo (Bonito, 2015; González-Perea, 2018; Conceição-Silva, 2021; Beraldo, 2021; Freitas, 2021; Pereira, 2021; Campanhã, 2021; González-Perea & Rodríguez-Ascaso, 2022; García-Prieto et al., 2022; Barbosa, 2023).
Esta temática integra uma preocupação que é dos movimentos sociais minoritários que lutam por representatividade, mas que também deveria ser do Jornalismo enquanto campo e enquanto tribo. Apesar da existência de leis que exigem a acessibilidade em sites que são mantidos por empresas brasileiras ou com sede no país (Brasil, 2015), estas não são cumpridas. Bonito (2015, p. 67) define a problemática a partir do conceito de leis invisíveis: “elas existem, mas como não são cumpridas a rigor, tem favorecido àquelas instituições que ocupam o lado hegemônico da cultura visiocêntrica e prejudicado os direitos civis conquistados pelas PDV no Estado de Direito em vigor no país”.
Quando proposta a discussão acerca da acessibilidade no jornalismo, é necessário elencar, em um primeiro momento, as problemáticas que envolvem a dimensão comunicativa da questão. Primeiramente, a acessibilidade não é parte integrante de uma cultura jornalística e de rotinas produtivas (Bonito, 2015; Beraldo, 2021; Wobeto, 2023). Do ponto de vista técnico, isso implica na ausência de tecnologias assistivas[1] e, consequentemente, de informação acessível a públicos com deficiência (Bonito, 2015; Beraldo, 2021; Freitas, 2021; Wobeto, 2023) - que somam quase 18,9 % da população brasileira (IBGE, 2023).
Para Beraldo (2021), “as discussões sobre inovação e modelos de negócio no jornalismo digital não contemplam a acessibilidade como pauta” (p. 118). A autora elenca que esse jornalismo que não pauta o ser acessível provoca três exclusões: quando o conteúdo de uma notícia não é acessível, quando a responsabilidade pelas questões de acessibilidade é elencada às pessoas com deficiência pela sociedade, e quando os órgãos públicos responsáveis pela fiscalização das legislações não cumprem seu papel. Portanto, para Beraldo, “a acessibilidade de notícias em redes digitais passa primeiramente pela legitimação social das pessoas com deficiência como sujeitos de direitos” (2021, p. 121).
Esta problemática perpassa não somente a realidade brasileira. Pesquisadores como González-Perea (2018) e González-Perea & Rodríguez-Ascaso (2022) apontam, em seus estudos na Espanha, um cenário que se assemelha ao do Brasil. Jornalistas são responsáveis pela geração e reforço de determinadas barreiras nos veículos nos quais trabalham (González-Perea, 2018). Apesar disso, também contribuem para a formação de barreiras à infraestrutura e design dos sites e dos sistemas de publicação (CMS).
Da mesma forma que a legislação brasileira, a espanhola também exige que os sites de administração ou financiados com recursos públicos e de empresas que prestam serviços na internet sejam acessíveis (González-Perea & Rodríguez-Ascaso, 2022). A partir disso, os autores elencam que a acessibilidade deve ser também uma competência dos jornalistas (González-Perea & Rodríguez-Ascaso, 2022), e que esta preocupação deve começar já na formação destes profissionais (González-Perea, 2018).
Outra questão fundamental na discussão sobre a acessibilidade e o jornalismo é do ponto de vista da representação: formas de narrar e hierarquizar produtos jornalísticos, como notícias e reportagens, podem privilegiar modos dominantes de falar sobre pessoas com deficiência. Em matérias que falam destes públicos, por exemplo, estas não são as fontes principais ou sequer são consideradas como entrevistadas (Freitas, 2021). Além disso, formas de narrar que priorizam uma perspectiva de superação e de heroísmo são capacitistas e só contribuem para reforçar estereótipos e preconceitos vigentes (Wobeto & Borelli, 2020). No cenário brasileiro, o tipo de representação heróica, que evoca o tom de superação, é muito comum em eventos como os Jogos Paralímpicos, em que há, para Gomes & Moutinho, “destaque para os feitos extraordinários e a compaixão aumentaria a audiência do desporto paralímpico, gerando maior retorno comercial” (2021, p. 319). Ou seja, o discurso jornalístico que evidencia as deficiências e suas temáticas afins também é aquele que espetaculariza e sensacionaliza (Wobeto, 2023).
O entendimento do jornalismo como profissão que perpetua preconceitos e maneiras dominantes de representação ancora-se em Moraes (2022, p. 21), que concebe o campo a partir das escolhas de hierarquias que diz “quem são as pessoas e lugares que valem mais - e, portanto, as pessoas e lugares que valem menos”. Para a autora, quando o jornalismo se apresenta como neutro e acima de paixões, ele é “responsável pela estigmatização de pessoas e grupos e, consequentemente, por seus apagamentos” (2022, p. 21).
Neste contexto, é necessário pontuar que parte das prioridades do Jornalismo remonta ao seu surgimento, que tem base no capitalismo (Marcondes-Filho, 2000; Genro-Filho, 2012). E esta lógica capitalista e industrial também interfere no interesse das empresas jornalísticas em investir em produções jornalísticas acessíveis (Wobeto, 2023). Para Bonito & Guimarães (2023), com o final da Segunda Guerra Mundial e suas consequências, as pessoas com deficiência passaram a ser mais visíveis na sociedade, e isto implica, futuramente, em sua luta por reconhecimento e direitos. No entanto, para Bonito & Guimarães (2023, p. 93), a criação de meios de comunicação não incorporou essa necessidade, já que estas mídias “foram desenvolvidas por pessoas típicas e sem a consultoria de pessoas com deficiência”.
Dessa forma, Bonito & Guimarães (2023, p. 95) afirmam que “é preciso tirar o foco da deficiência das pessoas e colocá-lo nas mídias”. A partir do entendimento de que as pessoas com deficiência já existiam quando os meios de comunicação foram criados, pode-se, de acordo com Bonito & Guimarães (2023, p. 95), “concluir que foram as mídias que nasceram com deficiências relativas à falta de acessibilidade”. Portanto, é preciso compreender as organizações jornalísticas responsáveis pelos veículos de comunicação como empresas que visam o lucro, já que estas estão inscritas em uma lógica capitalista em que a informação é transformada em um produto a ser vendido.
Assim, é necessário considerar a acessibilidade como parte inerente do fazer jornalístico. No entanto, ao contrário das histórias de superação - que vendem e tem potencial de sensacionalização -, o aspecto técnico da acessibilidade não parece ser prioridade de empresas jornalísticas. Apesar disso, recursos assistivos como a descrição de imagens são considerados como elemento de melhoria de SEO para ranqueamento de sites em sistemas de busca (Pedrosa, 2020). Isso evoca uma brecha para pensar a acessibilidade de modo estratégico, tanto do ponto de vista de posicionamento das organizações jornalísticas quanto da possibilidade de elencar os recursos assistivos[2] como centrais na busca por um campo mais democrático e cidadão.
Neste artigo, parte-se da premissa de que há um campo de estudos de deficiência e mídia em construção (Ellcessor et al., 2021; Garcêz, 2021), que elenca potencialidades de investigações que interseccionam as duas áreas. Entende-se que esta pesquisa se situa neste meio, não só por estudar objetos jornalísticos frente à mirada comunicativa da acessibilidade, mas também por se embasar em conceitos de autores que têm estudado o tema e têm se tornado referências basilares para estes estudos.
Destaca-se que o artigo resulta de parte de uma investigação de conclusão de curso em Jornalismo, em 2023, e que é produto de uma trajetória de quatro anos de iniciação científica, com continuidade na pós-graduação em nível de mestrado. A pesquisa objetivou a criação de indicadores de qualidade para a acessibilidade comunicacional em veículos jornalísticos (Wobeto, 2023), e é retratada aqui, principalmente, sob a ótica da reflexão estratégica da acessibilidade comunicativa como uma palavra-chave para um jornalismo verdadeiramente democrático e cidadão.
A inserção da acessibilidade comunicativa no jornalismo está essencialmente ligada à garantia da democracia e da cidadania. Antes de chegar a esta afirmação, no entanto, é necessário dar um passo atrás e remontar ao surgimento da profissão, que se baseia no capitalismo, mas que só se impulsiona a partir da luta pela garantia dos direitos humanos (Marcondes-Filho, 2000). Na realidade brasileira, esta vinculação é tão forte que o Jornalismo se diz estandarte da democracia, em ligação com o chamado “quarto poder”, que seria responsável por vigiar os outros três poderes políticos - o Executivo, o Legislativo e o Judiciário (Traquina, 2005). O jornalismo, assim, é instituído como o “cão de guarda” da sociedade (Marcondes-Filho, 2000) e, neste papel, detém poder de formação de opinião pública, o que não deixa de ser, também, um poder político (Traquina, 2005).
Moraes (2022) afirma que é uma profissão que sempre estigmatizou e exotificou o Outro, e que funciona, pelo discurso, como um reprodutor de violências, seja pela forma como representa as populações marginalizadas, seja pela ausência das mesmas nas notícias e nas redações. Com isso, para Moraes, construímos “cidadanias precarizadas, representações miúdas e violências consentidas” em uma “democracia que jamais deu conta de populações imensas, como as de pessoas negras e as indígenas, em um país que pouco combateu a pobreza, mas muito combateu o pobre” (2022, p. 18). A crítica é para com o modelo democrático liberal, que, para Moraes (2022, p. 103), “sempre permitiu - e permite - o extermínio de populações não brancas e não proprietárias”.
Um aspecto importante quando se fala de democracia são os direitos. Para Mata (2006), estes estão articulados a partir dos cidadãos como sujeitos de necessidades, de demandas e de decisão.
Se os sujeitos de necessidade estão nos meios como demonstração de marginalização da vida em comum, constituída por deveres e direitos, se os sujeitos de demanda visibilizam a caudacidade ou debilidade de formas políticas de representação anteriores, os sujeitos de decisão constituem o modelo midiático da democracia: o que se constrói com o voto individual, com a eleição desde a intimidade doméstica mediante recursos a algum dispositivo técnico ou desde a interpelação igualmente técnica que produzem as pesquisas de opinião sobre variadas questões de caráter político. (Mata, 2006, p. 10, tradução própria)
No entanto, no emaranhamento com as mídias, a principal maneira como os sujeitos são representados é pela necessidade, que evidencia precariedades (Mata, 2007). Nesse entendimento, de acordo com Mata (2006), “a informação sobre nós mesmos e a realidade que fazemos e vivemos e que os meios nos proveem através de milhares de palavras e imagens não é o único alimento para pensarmos e atuar” (p. 8, tradução própria). A autora pontua que, nas sociedades em processos de midiatização (Verón, 1997), estas mesmas palavras e imagens alcançam tanta força que não podemos pensar sem elas, ou seja, Mata (2006) diz que “podemos reconhecê-las como regulações discursivas que expressam, instauram e reproduzem regulações sociais” (p. 8, tradução própria). Em outras palavras, na medida em que os meios de comunicação retratam as pessoas sobretudo como sujeitos de necessidade, há ausências de representações que reconhecem e lutam pelos direitos dos cidadãos, o que é o caso das pessoas com deficiência, conforme já argumentado anteriormente, a partir de Freitas (2021) e Gomes & Moutinho (2021).
A partir disso, Mata (2006) propõe o conceito de cidadania comunicativa - proposição importante para pensar os estudos de acessibilidade no Brasil. Este diz respeito aos direitos civis, que incluem “a liberdade de expressão, o direito à informação, a possibilidade de exigir a publicidade de assuntos públicos, etc.” (2006, p. 13, tradução própria). É uma noção que se interliga com as referências identitárias que, para Mata (2006), “implica o desenvolvimento de práticas tendentes a garantir os direitos no campo específico da comunicação” (p. 13, tradução própria). Ou seja, pensando na legislação brasileira, que garante às pessoas com deficiência o acesso à informação em sites brasileiros (Brasil, 2015), o que inclui os jornalísticos, esta possibilidade de acesso é imprescindível para que este público seja considerado sujeito e, logo, cidadão. Ao não oportunizar o acesso ao público com deficiência por meio da construção de produtos jornalísticos acessíveis, os meios de comunicação ignoram este como público consumidor (Beilfuss & Bonito, 2017; Bonito & Santos, 2018), e negam sua cidadania.
Dialoga-se também com Beraldo (2021) quando questiona para quem o jornalismo é produzido. A maneira como os diferentes formatos jornalísticos são construídos diz muito sobre quem são os públicos consumidores. Quando constrói produtos sem acessibilidade, o jornalismo evidencia que não é feito para pessoas com deficiência. Isto vai ao encontro do que diz Bonito (2015) quando afirma que a hegemonia cultural em que vivemos compõe uma disputa que é de forças políticas entre pessoas sem deficiência e aquelas com deficiência. Bonito (2005) afirma que “o primeiro grupo, em situação mais confortável, detém as lógicas da hegemonia cultural vigente, enquanto que o segundo grupo está à mercê dessas lógicas” (p. 60).
A acessibilidade é uma questão de Direitos Humanos na medida em que a Declaração Universal de Direitos Humanos coloca como universal e inalienável o direito à liberdade de expressão, opinião e informação (Centers, 2000). Tendo o Jornalismo um papel social de informar e comunicar, Beilfuss & Bonito (2017, p. 4) estabelecem que ele “dá ao receptor a capacidade de que ele crie sua opinião e exerça o seu papel de cidadão, assim, quando não há informação acessível, não há respeito aos Direitos Humanos”. Gentilli (2005) coloca que o direito à informação tem ligação direta com a cidadania, além de que o jornalismo é parte constituidora decisiva de uma democracia representativa. O Jornalismo é, para Gentilli (2005, p. 142), “o instrumento que viabiliza o direito à informação, onde os jornais desempenham a função de mediadores e os jornalistas, individualmente, de representantes do leitor, telespectador e ouvinte, como indivíduos, consumidores e cidadãos”.
Portanto, a partir da reflexão dos autores e estudos elencados, evidencia-se que a discussão da cidadania gira em torno da questão de direitos o que, no caso das pessoas com deficiência, é basilar e representa uma luta de décadas pelo mínimo - que neste caso é a garantia do acesso à informação. Como dito, Bonito (2015) concebe que há legislações invisíveis - que existem no papel, mas que não são cumpridas e muito menos fiscalizadas. Exemplo brasileiro é a inserção de audiodescrição em faixas da grade de programação televisiva de canais da TV aberta, cuja obrigatoriedade é prevista desde 2011, mas desde então também é adiada por meio de recursos judiciais pelas próprias redes de televisão (Bonito, 2015)[3]. Esta é apenas uma amostra da problemática de direitos de acessibilidade no Brasil, pois nem as legislações são cumpridas pelos veículos de comunicação. Portanto, ao entrelaçar o jornalismo, a democracia, a cidadania e a acessibilidade, pode-se assegurar que, sem acessibilidade - em específico a comunicativa -, não há como o jornalismo se colocar como uma profissão que assegura a plena democracia e que promove a cidadania de todas as pessoas (Wobeto, 2023). Ao exilar pessoas com deficiência do acesso à informação, o jornalismo reforça a prioridade de determinados públicos do espaço de noticiar, narrar e representar, o que encontra a concepção de Moraes (2022) sobre os espaços e pessoas que valem mais. Beraldo (2021, p. 117) questiona: “Para quem o jornalismo é feito?”. Ao responder a essa pergunta, evidenciamos quais são os públicos considerados cidadãos. No jornalismo, portanto, pessoas com deficiência não são classificadas com potencial de consumidoras, o que, para Beraldo (2021, p. 125), perpetua valores excludentes nas redações e deixa “as pessoas com deficiência à margem da participação cidadã”.
É nesse complexo contexto que propomos pensar a acessibilidade comunicativa como uma palavra-chave de um jornalismo verdadeiramente democrático e cidadão. A garantia da cidadania está diretamente ligada ao direito de acesso à informação, o que, por sua vez, só é possível para todos os públicos também por meio da acessibilidade comunicativa em produtos jornalísticos. Sem acessibilidade, portanto, o Jornalismo não é promotor de cidadania e, na medida em que não atua como fiador de direitos, não pode ser considerado plenamente democrático. O jornalismo, atualmente, não é democrático para as pessoas com deficiência, ou seja, é falho na proposição de seu papel social, na garantia de direitos e, portanto, de cidadanias. Com isso, parte-se para a discussão metodológica.
Para alcançar o objetivo da investigação, que é a proposição de construção de indicadores de qualidade, desenvolveu-se um caminho metodológico que pode ser resumido nas etapas descritas a seguir.
Com embasamento em Barrichello (2016), é definida como uma pesquisa sobre o que já foi publicado sobre determinada temática para a construção de argumentos (Gash apud Barrichello, 2000); esta foi a primeira etapa da investigação, dividida na leitura e revisão de documentos teóricos - sobre jornalismo, comunicação e acessibilidade - e normativos (legislações, guias, manuais e normas de acessibilidade, base para a construção dos indicadores). Os últimos são a base para o entendimento das necessidades de acessibilidade em site, nas tecnologias assistivas essenciais para acessibilizar processos de comunicação e informação. Isto, inclusive, é fundamental para o desenvolvimento dos indicadores de qualidade e dos critérios dos mesmos.
Esta coleta de dados segue a perspectiva do jornalismo que tem circulação numa dada região para além da cidade sede (Borelli, 2015). A partir de dados de acesso consultados no Instituto Verificador de Comunicação (IVC) e da Associação Nacional de Jornais (ANJ), definiu-se em dois os veículos que constituem o corpus, que tem similaridades populacionais da cidade-sede e características semelhantes de estrutura do site. Aqui, estes serão denominados como Veículo 1 e Veículo 2. O primeiro localiza-se em uma cidade do nordeste do Rio Grande do Sul (que é a unidade federativa mais ao sul do Brasil) que tem cerca de 523 mil habitantes (IBGE, s.a.), é faz parte de uma empresa maior com tradição no estado, foi fundado em 1948 (75 anos), tem circulação diária e está no ambiente digital desde 2008. Já o Veículo 2 fica em uma cidade no sul do Rio Grande do Sul, com aproximadamente 343 mil habitantes (IBGE, s.a.), foi fundado em 1890, também tem circulação diária e tem versão online desde 1997.
A partir das bibliografias, estabeleceram-se os critérios para os indicadores. Eles foram divididos em quatro categorias de análise: a produção jornalística, a empresa jornalística, o nível técnico do site e a legislação. Os indicadores são divididos nestes eixos e a hierarquia dos pesos dos indicadores é a seguinte:
Tabela 1
Quadro teórico e normativo para a construção dos indicadores
Eixo de análise |
Aporte |
Autores |
Produção jornalística |
Teórico e normativo |
Medina (1995); Wolf (2009); Motta & Romeu-Filho (2010); Bonito (2015); ABNT (2016); Carpes et al., (2016); Naves et al., (2016); EBC (2018); Beraldo (2021); Carlón (2021); Freitas (2021); Pereira (2021); Conteúdo & Unicap (2022a; 2022b); Moraes (2022) |
Empresa jornalística |
Teórico |
Wolf (2009); Traquina (2005; 2013); Genro-Filho (2012); Bonito (2015); Beraldo (2021) |
Nível técnico do site |
Normativo |
W3C (2018) |
Legislação |
Normativo |
Brasil (1962; 1988; 2000; 2001; 2002; 2004; 2005a; 2005b; 2009; 2015) |
Fonte. Elaboração própria, 2024.
Com a elaboração e definição dos indicadores feita com base nos guias e normativas, foi realizada a testagem. No teste de aplicabilidade, os indicadores possíveis são aplicados nos sites dos veículos jornalísticos definidos para entender se, por meio deles, é possível fazer um diagnóstico da qualidade da acessibilidade comunicativa. A testagem segue um protocolo pré-definido e é registrada para análise. Os testes foram feitos a partir de observação manual com ajuda de softwares como o Nvidia Corporation (NVDA), que é um leitor de tela, e o Coblis - Color Blindness Simulator, um software simulador de daltonismo.
Na mesma etapa, foram feitos testes de usabilidade com pessoas com deficiência por meio de entrevistas (Gil, 2008). Três participantes testaram os sites do Veículo 1 e do Veículo 2 para verificar os elementos previstos nos indicadores: uma pessoa cega, uma pessoa surda e uma pessoa com daltonismo. Foram elaboradas perguntas acerca da acessibilidade dos dois veículos no eixo visual, auditivo e cromático. Os testes de usabilidade são complementares aos de aplicabilidade na medida em que funcionam como mais uma entrada de dados para verificar a valia dos indicadores. Por fim, como última etapa de testagem, foram realizadas entrevistas semi-abertas (Gil, 2008) com os editores de cada veículo, já que alguns indicadores dizem respeito ao dia-a-dia de uma redação jornalística e às questões editoriais[4].
A última etapa foi a análise e a discussão dos resultados, com reescrita da redação dos indicadores que apresentaram falhas no decorrer do processo, necessidade de ajustes e, ao final, foi feita uma nova testagem dos mesmos.
A fim de sistematizar o caminho metodológico percorrido, elencamos um quadro com as respectivas etapas, objetivos e teorias utilizadas (Tabela 2).
É importante mencionar que a metodologia elencada para o trabalho tem limitações, principalmente no que se refere à aplicação da ferramenta para geração de um ranking mais amplo, com mais veículos jornalísticos, conforme será relatado no próximo tópico. No entanto, este é um estudo exploratório, cuja intenção é criar uma ferramenta capaz de avaliar a qualidade da acessibilidade comunicativa em veículos jornalísticos. Não houve tempo hábil para aprofundar a ferramenta a partir dos níveis de sucesso do W3C, por exemplo, mas esta pode ser uma próxima etapa de investigação e, com isso, viabilizar melhorias na possibilidade de expandir o estudo para analisar sites de outras mídias. Além disso, esta ferramenta também não dá conta do cenário internacional, visto que a legislação de cada país com relação à acessibilidade tem suas especificidades.
É necessário elencar, além disso, que a combinação de diferentes procedimentos metodológicos foi necessária para a criação da ferramenta, principalmente pelo campo de estudos da área da Comunicação em interface com a acessibilidade ainda estar em construção. O fato de haver poucas investigações impacta nas pesquisas em andamento visto que não há marcos teóricos tradicionais estabelecidos. A emergência do campo denota, também, criação de procedimentos metodológicos próprios, o que pode ser percebido neste tópico. Com isso, partimos para a discussão dos resultados.
Tabela 2
Quadro metodológico
Nº |
Etapa metodológica |
Objetivo |
Teoria |
1 |
Revisão de literatura |
Construção do aporte teórico e normativo, base para discussão e construção dos indicadores (tabela 1). |
Barrichello (2016) |
2 |
Definição dos veículos a serem analisados |
Construção do corpus empírico da pesquisa, em que os indicadores serão aplicados para testagem da ferramenta. |
Dados provenientes do IVC e do ANJ e dados populacionais das cidades-sede dos veículos (IBGE, online) |
3 |
Redação dos indicadores |
Construção da ferramenta-teste a partir de sentenças verificáveis |
Aportes teóricos e normativos detalhados na tabela 1. |
4 |
Testagem |
Testagem da ferramenta por meio da aplicabilidade (1), usabilidade - com pessoas com deficiência (2) e coleta de informações com os editores dos veículos (3) |
Uso de softwares - NVDA e Coblis - para verificação de tecnologias assistivas e entrevistas semi-abertas (Gil, 2008) |
5 |
Análise |
Análise dos dados provenientes das testagens, ajustes e validação da ferramenta |
Técnicas quantitativas com cálculos. Registro de dados em tabela Excel e cálculo de pontuação por meio dos pesos pré-definidos. |
Fonte. Elaboração própria, 2024.
O conjunto de indicadores de qualidade para a acessibilidade comunicativa de veículos jornalísticos funciona como uma ferramenta para diagnosticar qual o nível do veículo de comunicação em relação à garantia de acesso à informação para pessoas com deficiência. Como resultado quantitativo, como dito, há quatro categorias temáticas (produção jornalística, empresa jornalística, nível técnico do site e legislação), nove grupos temáticos, 96 conjuntos agrupados e 188 sentenças. Os grupos temáticos dizem respeito a processos produtivos específicos dentro dos eixos temáticos. Os conjuntos agrupados (Wobeto, 2023) se referem às sentenças que abordam o mesmo recurso assistivo em determinado formato, e que possibilita conferir o nível de acessibilidade ideal, intermediário e básico, como no exemplo a seguir, em que as sentenças se referem a um mesmo conjunto agrupado, o da videorreportagem (Wobeto, 2023). O exemplo apresentado - o da videorreportagem - objetiva mostrar como se dá a redação dos indicadores. Por exemplo, no caso da sentença a), ao ser aplicada, há verificação da presença ou ausência de descrição de imagens por meio de tradução sonora em videorreportagens no veículo jornalístico.[5]:
A aplicação dos indicadores é registrada em uma tabela Excel, por meio do registro de respostas às sentenças: positivas no caso da presença das tecnologias assistivas ou negativas no caso da ausência das mesmas. A tabela de testagem é exemplificada na Figura 1.
Na etapa dos testes de aplicabilidade, a maioria dos indicadores foram possíveis de serem aplicados, o que mostra um resultado preliminar importante para a investigação já que demonstra que diferentes aspectos de um veículo jornalístico com relação à acessibilidade podem ser avaliados. 74 % (117) dos indicadores aplicados no site do Veículo 1 funcionaram, contra 10,1 % (16) em que houve confusão na resposta à sentença. Já no caso do Veículo 2, os indicadores com resultado satisfatório representam 79,74 % (126) do total, contra 5,69 % (9) cuja resposta ficou confusa, ou seja, não foi possível responder a sentença com ‘sim’ ou ‘não’. Nestes casos, o indicador precisou passar, posteriormente, por uma reestruturação da sentença. As porcentagens faltantes representam os indicadores que não são passíveis de conferência nesta etapa (Tabela 3).
Tabela 3
Dados gerados pelo teste de aplicabilidade nos veículos
Veículo 1 |
Veículo 2 |
|
Indicadores que funcionaram |
117 |
126 |
Indicadores que precisam de ajustes |
16 |
9 |
Indicadores que não são possíveis de conferência nesta etapa de pesquisa |
25 |
23 |
Indicadores que precisam ser acrescentados |
1 |
1 |
Fonte. Dados extraídos a partir de Wobeto (2023).
Com relação à análise deste estágio de testagem, as convergências observadas são com relação aos níveis de intensidade. A intenção é que os indicadores tenham níveis de sucesso, por isso, quando a sentença do indicador afirma que o veículo tem contraste responsivo nas imagens (Pereira, 2021), é necessário que haja uma separação entre todas, algumas e nenhuma peça gráfica. Afinal, haver contraste responsivo em uma imagem, apesar de não ser o ideal, é melhor do que não ter em nenhuma.
A partir dos testes de usabilidade por meio de entrevistas semi-estruturadas (Gil, 2008) com as pessoas cega, surda e daltônica, foi possível evidenciar que os indicadores são aplicáveis a partir do ponto de vista do usuário. Isso porque, a partir dos comandos das sentenças, é possível identificar elementos e apontar se os mesmos são ou não acessíveis do ponto de vista visual, auditivo e da cor. As convergências identificadas por meio das entrevistas com pessoas com deficiências apontam o que já foi evidenciado no aspecto teórico deste artigo: que o acesso à informação e, portanto, do consumo de produtos jornalísticos, é prejudicado pela ausência de acessibilidade. Além disso, há precariedades na implementação, no caso de existirem elementos assistivos. Estes fatores corroboram a reflexão realizada anteriormente sobre a cidadania comunicativa, o acesso e os direitos à informação e à comunicação. A partir destas lacunas, o jornalismo não corrobora na prática da cidadania para estes públicos, e falha em sua missão basilar de defensor da democracia.
Por fim, com relação à etapa de entrevistas semi-estruturadas (Gil, 2008) com editores dos veículos jornalísticos, foram aplicadas as sentenças que não eram passíveis de conferência nas etapas anteriores, já que dizem respeito a questões editoriais e de rotinas produtivas. As principais convergências com relação às questões das entrevistas resultaram no fato de que as iniciativas de acessibilidade - tanto técnicas quanto de pautas - são pontuais, por parte de jornalistas que se interessam pela temática. Apesar de ser preocupação dos veículos de comunicação, os mesmos não conhecem todos os caminhos para que os sites sejam plenamente acessíveis. A constatação vai ao encontro do que concebem Bonito (2015) e Beraldo (2021) quando afirmam que jornalistas não conhecem os caminhos para serem acessíveis em suas práticas diárias. Diante dessas práticas, não conseguem construir narrativas que funcionem como pontes entre as pessoas com deficiência e a produção jornalística.
Além disso, ainda que alguns elementos técnicos e jornalísticos tenham pontuado nos diferentes processos de testagem, estes não foram, necessariamente, pensados para a acessibilidade comunicativa. Um exemplo é o uso de linguagem simples, que é um dos critérios dos indicadores e em que os dois veículos pontuaram, mas que é, ao mesmo tempo, uma das prerrogativas da qualidade de um texto jornalístico. Isto influencia na acessibilidade do veículo, mas também denota que algumas pontuações dos veículos podem estar relacionadas com as noções de qualidade jornalística.
A partir do caminho de testagem, iniciou-se a limpeza e o tratamento dos dados para calcular a pontuação de cada veículo e estabelecer um ranking de qualidade da acessibilidade comunicativa no jornalismo. É necessário evidenciar que esta etapa do estudo conta com apenas dois veículos visto que se trata da construção de uma ferramenta que possa medir o nível da qualidade da acessibilidade no jornalismo (Wobeto, 2023). Sabe-se que um ranking com apenas dois colocados não dá conta de todo um universo profissional e que a partir disso não é possível estabelecer um diagnóstico completo quanto à acessibilidade comunicativa no jornalismo brasileiro. No entanto, é possível qualificar os veículos individualmente, o que, no caso desta pesquisa, é importante para verificar o funcionamento da ferramenta.
O peso de cada uma das categorias de indicadores foi pré-definido a partir de embasamento teórico, normativo e legislativo, conforme a tabela 1. Estes dizem respeito a uma ordem hierárquica de importância que privilegia a atividade jornalística como central e estabelece que, no caso de uma ferramenta que avalia a qualidade da acessibilidade comunicativa no jornalismo, deve conceber maior pontuação aos processos jornalísticos do que ao legislativo, por exemplo, já que este deveria ser cumprido por si só e, portanto, é o mínimo que um veículo deveria fazer. É uma compreensão que considera a separação em níveis que se entrelaçam, já que a atuação plena do profissional jornalista com relação à acessibilidade depende do respaldo da empresa jornalística. A hierarquia dos pesos dos indicadores foi detalhada na parte metodológica deste artigo.
A partir da definição dos pesos dos indicadores, partiu-se para a limpeza e o tratamento dos dados, e conforme as pontuações pré-determinadas[6] para cada categoria de indicadores, chegamos a um ranqueamento entre os dois veículos. A pontuação do Veículo 1 ficou em 3,196. Já o Veículo 2 ficou com pontuação em 2,523 - portanto, segundo colocado no ranking.
Entre as considerações sobre este resultado está, em primeiro lugar, a de que ambas as pontuações dos veículos são baixas, e isto evidencia lacunas de acessibilidade comunicativa nestes veículos e também retrata as problemáticas relatadas no que diz respeito à deficiência das mídias (Bonito & Guimarães, 2023). Um ponto fundamental é a validação da ferramenta dos indicadores de qualidade, porque a partir da observação nas etapas anteriores, com as testagens já havia a hipótese de que as pontuações fossem baixas. Outro aspecto a ser considerado é que a legislação não foi cumprida nos dois veículos, o que indica uma preocupação necessária, já que o cumprimento do ponto de vista legislativo é o mínimo de nível de acessibilidade que essas mídias deveriam ter, o que vai ao encontro da discussão das legislações invisíveis (Bonito, 2015).
Deve-se, ainda, levar em conta que a hierarquização dos pesos de cada uma das categorias dos indicadores impacta na pontuação final dos veículos. Já evidencia-se que as escolhas se justificam a partir do recorte teórico e analítico da pesquisa, e que a ferramenta seria outra se tivesse um enfoque do nível técnico de acessibilidade do site, por exemplo. Enfatiza-se que, nesta pesquisa, a construção da ferramenta tem a especificidade da aplicabilidade de tecnologias assistivas e conhecimentos acessíveis para o jornalismo, seus processos produtivos, escolhas editoriais e seu entorno. O nível técnico do site e a legislação são basilares para a atuação jornalística. Portanto, os resultados são impactados por essas escolhas e, por isso, devem ser relativizados. Um exemplo é o nível técnico do site, em que Veículo 2 cumpre mais requisitos (41) do que o Veículo 1 (34). Mas em comparação, do ponto de vista da categoria da empresa jornalística, Veículo 1 cumpre mais indicadores (5) do que Veículo 2 (2,6). Como o eixo dois, da empresa jornalística, tem maior peso hierárquico nesta ferramenta, o Veículo 1 ficou na frente.
Por conta do espaço disponível ao texto neste artigo, não é possível elencar todos os indicadores[7], por isso eles são apresentados de forma resumida pelas categorias da produção jornalística, empresa, nível técnico e legislativo:
1.1. Planejamento da pauta: consiste na organização e preparação do formato do produto jornalístico, quando a logística permite. Isso porque, nesta organização de formatos, já é possível prever os recursos de acessibilidade necessários. Em caso de pautas sobre acessibilidade e pessoas com deficiência, compreende a vigilância com relação aos vieses que reproduzem estigmas e preconceitos.
1.2. Apuração: neste tópico está a inserção de pessoas com deficiência como fontes jornalísticas não somente em pautas relativas à temática da deficiência, de acessibilidade e datas relativas, mas em outras pautas.
1.3. Entrevistas: além de entender pessoas com deficiência como fontes jornalísticas, conforme mencionado na apuração, compreende a preparação da entrevista com pessoas com deficiência, que deve contar com os recursos assistivos adequados (autodescrição, descrição do ambiente, contratação de intérprete de Língua Brasileira de Sinais (Libras).
1.4. Produção jornalística: etapa em que o produto jornalístico é feito, o que envolve os formatos e as rotinas produtivas. Com relação ao texto, a linguagem precisa ser clara, objetiva e com organização de hierarquia informativa. Os elementos visuais devem ter audiodescrição ou descrição de imagens, e contraste responsivo que permita a compreensão de todas as informações. Em infográficos, gráficos, mapas e tabelas, deve-se aplicar recursos que propiciem outras formas de entendimento da informação (nomeação de cores, símbolos e representações, texturas e padrões geométricos, contornos e espaçamentos, alterações de matiz, saturação e luminosidade). Em produtos audiovisuais, devem ser inseridas a descrição de imagens, das pessoas e dos cenários, a inclusão da Janela de Libras e da Legendagem para Surdos e Ensurdecidos (LSE), acesso ao roteiro do produto (transcrito e acessível), intérprete de Libras ou possibilidade de ativação da legenda automática, e, em entrevistas ao vivo no formato de live, deve haver contraste responsivo de cor com o backdrop, legendas e créditos dos participantes. Em produtos sonoros, deve haver acesso ao roteiro transcrito e acessível, além de possibilidade de ativação de legenda automática. Em rádios incorporadas no site do veículo, a ativação de legendas automáticas deve estar disponível, além da produção do conteúdo veiculado em outros formatos. Em caso de hiperlinks no texto, estes precisam ter mais de uma possibilidade de identificação (cor, sublinhado, negrito, itálico). Testes de responsividade da cor devem ser aplicados nos produtos jornalísticos em seus diversos formatos.
1.5. Circulação: pensa a publicação do produto jornalístico no site, em que: a audiodescrição ou descrição de imagens deve ser inserida no campo adequado (e não no espaço da legenda); identificação de hiperlinks com descrição do conteúdo; estilos de texto precisam ser usados de modo correto a fim de hierarquizar a publicação, o que propicia melhor navegabilidade do leitor de tela; o texto deve estar em uma única coluna; estilos de texto devem ser usados para adicionar boxes, citações, olhos e demais elementos; no caso de publicações longas, deve-se inserir hiperlinks na estrutura do produto jornalístico, como se fosse um sumário.
1.6. Divulgação: etapa em que os produtos jornalísticos são divulgados, feita por meio das redes sociais digitais do veículo. Aqui, são compreendidos o planejamento de elementos de acessibilidade, o que inclui o uso de recursos como descrição de imagens ou audiodescrição, LSE, Janela de Libras e legenda simples. Os elementos descritivos precisam ser inseridos nos campos específicos para isto. No caso de vídeos curtos publicados em stories, a edição anterior à publicação deve incorporar a descrição sonora, a Janela de Libras e a LSE, ou a legenda simples na impossibilidade dos recursos anteriores. Cards, imagens e peças gráficas precisam ter audiodescrição/descrição de imagens e contraste responsivo.
Um destaque necessário para a potencialidade da ferramenta criada é que a mesma não isola o processo de produção jornalística das decisões editoriais, da base técnica acessível do site e da legislação que rege as normativas de acessibilidade brasileiras. Isso é importante para evidenciar aspectos diversos da acessibilidade comunicativa, cuja implementação ampla é complexa, mas possível. Por exemplo, um veículo jornalístico pode ter um site com nível técnico acessível, que possibilita inserção de descrição de imagens, mas cujos profissionais jornalistas não têm conhecimento técnico para a feitura do mesmo recurso.
Além disso, há uma visão ampla no sentido de compreender formatos tradicionais, como o texto e a imagem, em conjunto com formatos jornalísticos emergentes, como o podcast, o infográfico e recursos multimídia, além das redes sociais digitais. É importante evidenciar, neste processo, que entende-se o jornalismo como uma profissão que não deve estar centrada em si mesma, visto que vários dos elementos citados nesta pesquisa - em especial os de nível técnico - não devem ser de responsabilidade deste profissional, mas estão no conjunto de atuação de uma empresa jornalística, o que incorpora outros profissionais. A divulgação do conteúdo jornalístico em redes sociais digitais é outro exemplo, já que a profissão de social media, hoje, é feita tanto por jornalistas quanto por outros profissionais da área, como relações públicas, produtores editoriais e publicitários e publicitárias.
Os resultados encontrados na investigação indicam que o Jornalismo não pode se considerar verdadeiramente democrático e cidadão sem a acessibilidade comunicativa como regra. Isto porque, a partir das etapas de testagem da ferramenta construída, principalmente a de entrevistas com as pessoas com deficiência, a identificação de lacunas e de ausência de recursos assistivos denota que estas pessoas encontram barreiras no momento de consumir um produto jornalístico. No processo de construção e testagem da ferramenta de avaliação da qualidade da acessibilidade comunicativa em veículos jornalísticos, foram encontradas lacunas do ponto de vista técnico e representativo que os estudos elencados no aporte teórico já mostraram. Assim, a investigação evidencia a permanência das barreiras de acesso e, logo, da possibilidade de pessoas com deficiência exercerem suas cidadanias e usufruírem de direitos.
Além disso, as baixas pontuações que os veículos analisados tiveram a partir dos indicadores refletem uma baixa qualidade dos níveis de acessibilidade aplicados, principalmente com relação à produção e à empresa jornalística, mas também em relação à legislação. Isso reflete um cenário em que os veículos não priorizam a acessibilidade e também desconhecem os caminhos para tal. As empresas não investem em tecnologias, nem na formação de seus profissionais (Wobeto, 2023; Beraldo, 2021) e tampouco buscam tornar as redações mais diversas (Medina, 2021).
São poucas as práticas e discussões na área de Comunicação e do Jornalismo acerca desta temática, o que torna as pesquisas sobre este entrelaçamento necessárias. Em um campo de estudos que está em estágio inicial e de construção, é necessário que investigações sejam feitas, testadas e aprofundadas. Assim, a potencialidade da ferramenta construída também se enquadra nisto, a partir da identificação da qualidade da acessibilidade de veículos jornalísticos, identificação de suas lacunas e caminhos para melhorias. Estes apontam para a implantação de tecnologias assistivas nas mídias jornalísticas, na implantação de rotinas jornalísticas que considerem a prática da acessibilidade comunicativa e na construção de textos que não estigmatizam os públicos com deficiência. Estes aspectos passam, também, pela inserção de práticas pedagógicas de acessibilidade comunicativa na formação de jornalistas.
Além disso, estes resultados apontam questionamentos importantes e pertinentes com relação ao debate proposto no campo teórico. Como o Jornalismo quer colocar-se como estandarte da democracia sem acessibilidade em suas práticas? Esta discussão remonta, novamente, à conceituação de Bonito & Guimarães (2023), quando afirmam que a deficiência está nas mídias, e não nas pessoas. Profissão que se propõe como estandarte da democracia e promotora de cidadania, o jornalismo precisa reconhecer suas falhas e inserir a prática da acessibilidade comunicativa como parte da rotina produtiva.
O estágio em que o campo se encontra hoje é inicial, e mostra apenas um reconhecimento da problemática nos processos produtivos e nas maneiras de representar o público com deficiência. O caminho para a mudança é longo, e exige mais do que posturas e iniciativas isoladas de profissionais jornalistas, mas a disposição de todo o campo para romper com as formas cristalizadas de representações capacitistas do público com deficiência e demais minorias, além da qualificação do aspecto técnico da produção jornalística, o que inclui a implantação de tecnologias assistivas em todo o processo produtivo. Reforça-se que, sem a acessibilidade comunicativa, o jornalismo não consegue comunicar para todas as pessoas, e, consequentemente, falha na missão democrática e cidadã em que se coloca como seu papel social.
Viviane Borelli e Luan Moraes Romero atuaram como orientadora e coorientador do trabalho, a partir da supervisão e orientaram a coleta e tratamento dos dados, além da sistematização dos resultados.
Agradecemos às pessoas com deficiência e aos editores dos veículos 1 e 2 que contribuíram para esta pesquisa por meio das entrevistas. Aos avaliadores do trabalho na defesa da monografia, pelas sugestões e comentários. E, por fim, à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal (Capes), que financia a bolsa de pesquisa no nível do Mestrado, e que tornou possível a construção deste artigo.
Samara Wobeto é jornalista e mestranda em Comunicação pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria (POSCOM/UFSM), bolsista Capes, integrante do Grupo de Pesquisa Circulação Midiática e Estratégias Comunicacionais (Cimid/UFSM).
Viviane Borelli é docente do Programa de Pós-graduação em Comunicação e do Departamento de Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), líder do Grupo de Pesquisa Circulação Midiática e Estratégias Comunicacionais (Cimid/UFSM), doutora em Ciências da Comunicação pela Unisinos.
Luan Moraes Romero é jornalista, mestre em Comunicação e doutorando em Comunicação pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria (POSCOM/UFSM), integrante do Grupo de Pesquisa Circulação Midiática e Estratégias Comunicacionais (Cimid/UFSM).
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[1]. “[...] produtos, equipamentos, dispositivos, recursos, metodologias, estratégias, práticas e serviços que objetivem promover a funcionalidade, relacionada à atividade e à participação da pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida, visando à sua autonomia, independência, qualidade de vida e inclusão social”. (Brasil, 2015, s.p).
[2]. Os recursos assistivos são diversos e podem ser elencados em audiodescrição (ABNT, 2016; Carpes et al, 2016; Motta e Romeu Filho, 2010), Legendagem para Surdos e Ensurdecidos (EBC, 2018; Naves et al, 2016) e Janela de Libras (EBC, 2018), caracteres ampliados (ABNT, 2016), leitor de tela (Salton, Dall Agnol e Turcatti, 2017), Princípios da Acessibilidade Cromática para Daltonismo (Pereira, 2021), entre outros.
[3]. Argumentos usados para a revogação de portarias foram a transição do modelo analógico pro digital, a falta de mão de obra especializada para a construção de audiodescrição e tradução em Libras e a ‘impossibilidade’ de adequação dos conteúdos ao vivo. São justificativas que atendem aos interesses das emissoras de Rádio e Televisão brasileiras (Romeu Filho apud Bonito, 2015).
[4]. Nas etapas dos testes de usabilidade e das entrevistas, tanto as pessoas com deficiência quanto os editores assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido, que informa os procedimentos e objetivos da pesquisa.
[5]. Optou-se por mostrar apenas um exemplo já que o conjunto dos indicadores é extenso, e pode ser conferido, na íntegra, nas páginas 148 a 159 do trabalho de conclusão de curso (Wobeto, 2023), no link: https://repositorio.ufsm.br/handle/1/28896.
[6]. Conforme já elencado na parte metodológica, as categorias de análise dos indicadores foram determinados a partir dos pesos 4 (produção jornalística), 3 (empresa jornalística), 2 (nível técnico do site) e 1 (legislação). A partir disso, na categoria 1, o peso 4 ainda foi dividido conforme as etapas do processo de produção jornalística, considerando o tempo de duração de cada processo e as técnicas empregadas: Apuração = 0,4; Planejamento da pauta = 0,4; Entrevistas = 0,5; Produção do produto jornalístico = 1,0; Publicação = 1,0; e Circulação = 0,7. A partir disso, cada categoria foi dividida pelo número de indicadores, o que estabelece um peso individual. Por exemplo, em ‘Apuração’, como são quatro os indicadores propostos, o peso 0,4 foi dividido por 4, o que resulta em um peso de 0,1 por indicador. Assim foi feito nas demais categorias e grupos temáticos.
[7]. A redação final de todos os indicadores está disponível nos anexos da versão final da monografia (Wobeto, 2023).